sábado, 14 de março de 2020

A Inquisição em Portugal (segundo Oliveira Martins) (2)



(Continuação da 1.ª Parte - 12-Março-2020) (ver aqui)

" (...) Cordões de tropa impediam que o povo invadisse, na praça, o recinto reservado ao Auto.
Havia ali, para um lado, afastadas, as pilhas de madeira, rectangulares, com o poste erguido ao centro e um banco; e no meio da praça um espaço reservado com o estrado e as tribunas.
Na da esquerda estava o rei, D. João III, piedosamente satisfeito na sua fé, com o espírito duro, mas sincero e forte; estavam a rainha e a corte; e, ao lado do monarca, o condestável com o estoque desembainhado.

Na outra, da direita, levantavam-se o trono e dossel do cardeal D. Henrique, depois rei, e agora infante inquisidor-mor, ladeado pelos membros do tribunal sagrado, nos seus bancos.
A meio do tablado ficava o altar, com frontal preto, banqueta de seda amarela, e um crucifixo ao centro. Em frente, num plinto, erguia-se o estandarte da Inquisição. (...)
E os padecentes, em linhas, ficavam de pé, voltados para o altar, para o púlpito, para o tribunal.

 
Disse-se missa. O inquisidor-mor, de capa e mitra, apresentou ao rei os Evangelhos, para sobre eles jurar e defender a fé. D. João III e todos, de pé e descobertos, juraram com solenidade sincera. Depois houve sermão; e finalmente a leitura das sentenças, começando pelos crimes menores.

A adoração das imagens, questão debatida nos concílios, dava lugar a muitas faltas.
Outros iam ali por terem recusado beijar os santos dos mealheiros, com que os irmãos andavam pelas ruas pedindo esmola.
Outros por irreverências, outros por falta de cumprimento dos preceitos canónicos; muitos por coisa nenhuma; a máxima parte, vítimas de delações pérfidas ou interessadas.

Os relatores iam lendo as sentenças, os condenados gemendo e chorando; outros, exultando por se verem soltos do cárcere, livres da tortura, prometendo de si para consigo serem de futuro meticulosamente hipócritas.


Chegou-se finalmente aos condenados à morte, no fogo: eram três mulheres por bruxas, e dois homens, cristãos-novos, por judaizarem, mais um por feiticeiro.
O relator, imperturbável, leu as sentenças, onde se narravam os crimes.

Os cristãos-novos comiam pães ázimos; e um deles, quando varria a casa, chamava nomes a um crucifixo, fazia-lhe caretas, e dava-lhe tantas unhadas quantos eram os golpes de vassoura no chão.

Estes crimes vinham envolvidos em frases horrorosas e generalidades tremendas; e a corte, o clero e o povo, ao ouvirem tão grandes sacrilégios, pasmavam de ódio contra os desgraçados.


 
A feitiçaria não os impressionava menos.
Cristãos-novos e bruxos, que lançavam malefícios e olhados, eram a causa das pestes, das fomes e dos naufrágios das naus da Índia.
Sobre as cabeças dos desgraçados caíam as maldições de uma população aflita. Ninguém duvidava da verdade dos crimes, que muitas testemunhas afiançavam.

O diabo aparecera a um, e ensinara-lhe as curas infernais, pelo livro de S. Cipriano. Sangrava os doentes na testa, com alfinetes. "Estou picado e enfeitiçado: Jesus! nome de Jesus! despicai-me e desenfeitiçai-me!" - dissera uma vítima a um padre da Beira.
Os diabos, para se vingarem, foram a casa do padre e quebraram-lhe toda a louça.
Um caso terrível era esse; e o povo olhava com horror para o médico de S. Cipriano, que tinha a loucura evidente na face.

 
Às bruxas o diabo aparecia de dia sob a forma de um gato preto, e, de noite, de forma humana de homem pequeno; assim o dizia gravemente a sentença, com o depoimento das testemunhas.

A bruxa saía com o demónio e iam juntos a um rio, onde as outras estavam com outros demónios; e depois de se banharem tinham coito com circunstâncias lascivas e abomináveis; a sentença enumerava-as e a devassidão da corte e do povo percebia-as, comentava-as.

De volta ao sabbath, de madrugada, as bruxas entravam invisivelmente nas casas, perseguindo as famílias honestas e piedosas.


Terminada a leitura, absolvidos os penitentes, os cristãos-novos e as bruxas foram relaxados ao braço secular para serem queimados.
O rei, a corte e o inquisidor retiraram-se; e os sinos continuavam a dobrar, pausada e funebremente.
Os carvoeiros de alabardas, os verdugos de capuzes, e os frades de escapulário e crucifixo na mão, ficaram junto dos condenados para os queimar.

O povo cercou em massa o lugar das pilhas quadrangulares de lenha, com os olhos ávidos e a cabeça cheia de cóleras contra esses réus das suas desgraças.
Todos, menos o bruxo, morreram piedosamente, garrotados, depois queimados.

O médico de S. Cipriano, porém, tinha culpas maiores e fora condenado a ser queimado vivo.
Junto da pilha, o frade, com as mãos postas, pedia-lhe que, por Deus, se arrependesse; mas ele, com o olhar esgazeado do louco, virava a cara e zombava.

Largando a correr pela escada, subia à pilha, e, do alto, sentado no banco, fazia esgares e visagens irreverentes.
O frade batia nos peitos, a plebe rugia colérica.
Os verdugos amarraram-no ao poste e os carvoeiros acenderam a fogueira, que principiou a crepitar.
Os rapazes e as mulheres da Ribeira, salteando-o com paus e garrunchos, arrancaram-lhe um olho. Atiravam-lhe pedras, pregos, e tudo; e faziam-lhe feridas por onde escorria sangue: tinha a cabeça aberta e um beiço rasgado.

Entretanto, a chama começava a romper por entre os toros; e ele com as mãos, estorcendo-se, dava no fogo, querendo apagá-lo; e quando via, com o olho que lhe restava, vir no ar uma pedra, fazia rodela ou escudo com a samarra, para se livrar. Do vão do outro olho escorria pela face um fio de sangue.

Isto já durava por mais de uma hora e divertia muito o povo - agora que tinha a certeza de ver morrer o seu inimigo.
Mas o vento, que soprava rijo do poente, da banda do rio, arrastava consigo as chamas; e por não ter fumos que o afogassem, o condenado ficou três horas vivo, a torrar, agonizando, contorcendo-se, em visagens, e gritando - ai!... ai!... ai!...".

Fim da 2.ª e última parte

(Oliveira Martins - História de Portugal - 1.ª ed. - 1879)

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