"Garratt" - mítica locomotiva das grandes distâncias africanas!
Lembro com nitidez o instante da minha infância em que vi uma pela primeira vez - semelhante à que aqui vos deixo. Parada e poderosa nos carris de uma estação ferroviária do Sul de Angola, luzindo com um brilho baço de limpeza recente, soprando da chaminé baixa fumos negros e espessos, esguichando dos flancos um vapor esbranquiçado e impaciente - "fschhhhh..." . A pedir viagens, apeadeiros, descobertas - "fschhhhh...".
Fiquei mudo e extático, esmagado na minha pequenez pela presença imóvel mas fremente do monstro. Sentia-me ao mesmo tempo intimidado e encantado pela novidade, acostumado que estava às maquinazinhas quase de brinquedo que haviam percorrido, até então, os carris de bitola estreita entretanto substituídos por outros mais largos para poderem acolher os gigantes de ferro recém-chegados.
Fiquei mudo e extático, esmagado na minha pequenez pela presença imóvel mas fremente do monstro. Sentia-me ao mesmo tempo intimidado e encantado pela novidade, acostumado que estava às maquinazinhas quase de brinquedo que haviam percorrido, até então, os carris de bitola estreita entretanto substituídos por outros mais largos para poderem acolher os gigantes de ferro recém-chegados.
Aconteceu na cidadezinha de Moçâmedes (província do Namibe, Angola), urbe tranquila e doirada, de arvoredos dispersos pelas ruas direitas, traçadas, a régua e esquadro, entre os areais do deserto e uma baía de águas azuis e translúcidas.
De um lado da cidade ficava o deserto amplo, povoado de animais furtivos e de uma multidão de "Welwitschia Mirabilis", plantas rastejantes que sempre me fizeram evocar legiões de caranguejos vegetais a fugirem, açodados, da presença perigosa dos intrusos.
Para Gastão Sousa Dias (1), sempre com o justo verbo, a "welwitschia" é " a planta filha do deserto, que, na sua forma e contextura estranhas, parece querer significar toda a aridez, todas as torturas da sede , todo o horror da adaptação a um meio hostil".
Do outro lado, apertando o casario e o deserto num abraço de frescuras atlânticas, a espaçosa baía com o moderno porto de mar, onde acostavam paquetes imponentes das Companhias de Navegação portuguesas (a Colonial e a Nacional). O Uíge, o Infante Dom Henrique, o Moçambique, o Pátria, o Império, o Angola, tantos outros...
De vez em quando atracavam vapores estrangeiros ou vasos de guerra de canhões sossegados e recolhidos, pois ali não havia, nem chegou a haver, nesses tempos lusitanos, qualquer novidade bélica.
A tripulação de um navio japonês que por ali passou um dia deixou como lembrança à estação de rádio local (Rádio Clube de Moçâmedes - RCM) um disco de música romântica do seu país, de 45 r. p. m. E, meses a fio, soaram na baía e nos areais vizinhos, por cima das "welwitschias" e das casuarinas, as estrofes doridas e exóticas de um cançonetista nipónico destroçado por terríveis males de amor. Entre a população comovida ninguém percebeu jamais de que sofria o japonês. Suspeitavam, apenas - pelo tom melado, pelas fracturas de voz, pelas bruscas interjeições... E, suspeitando, todos gostavam de o ouvir. O RCM. fazia-lhes a vontade. Até que o disco fatalmente se riscou e o infeliz apaixonado se calou de vez.
Este era o edifício da estação ferroviária de Moçâmedes (aqui no seu estado actual).
Naquele tempo ele resplandecia ao sol do mar e do deserto, no seu ocre imaculado, marginado de faixas arroxeadas. As portas centrais, de topos arredondados, davam acesso às bilheteiras e à gare. Defronte da estação começava a "Avenida" (onde terminavam os muros do velho campo de futebol, entretanto desaparecido).
A "Avenida" era um espaço extenso, que cortava a cidade de norte a sul, com os seus canteiros de flores multicoloridas, tanques de água, buganvílias e palmeiras.
Aqui passeavam, nas tardes de domingo, com sedutores vagares, ranchinhos perfumados de jovens meninas, cruzando olhares fugidios com os pretendentes, em cenas discretas que as correspondentes famílias (a mãe, o pai, os avós, os manos mais velhos) patrulhavam a conveniente distância.
Das arvorezinhas baixas da "Avenida" pendiam instalações sonoras, de cujos altifalantes escorriam os êxitos musicais da época - de Amália Rodrigues, de Tristão da Silva, de Alberto Ribeiro, de Maria Clara.
Ouvia-se a Casa Portuguesa, o Nem às Paredes Confesso, a Canção do Cigano, a Fonte das Sete Bicas. E soavam ainda tangos plangentes e requebrados, trazendo aos crepúsculos sul-angolanos uma inusitada e muito romântica sugestão argentina. Foi nesses primeiros anos que tomei conhecimento, sem saber a quem pertencia, daquela voz castigada e roufenha a chorar por "mi Buenos Aires querido". Só muito depois soube tratar-se do desditoso Carlos Gardel. Que assim embalou, a milhares de quilómetros, e muitos anos depois de se despedir da vida, o começo de muitos e tórridos amores moçamedenses.
Era por aqui que ficava, então, a estação ferroviária da cidade. E foi por detrás desta vetusta fachada que me encontrei, na minha infância, e nos termos acima descritos, com a minha primeira "Garratt".
As "Garrats" apareciam na parte de trás da estação para movimentarem comboios extensos - de passageiros, de mercadorias ou mistos - entre Moçâmedes e Sá da Bandeira (Lubango). Não tardei a descobrir que as guardavam em enormes oficinas próximas da estação. Sentava-me num muro que dava para as instalações ferroviárias e desse poiso privilegiado vigiava durante horas as manobras, as idas e as vindas daqueles monstros de linhas elegantes.
As locomotivas ficavam a aquecer, acumulando vapores e energias, durante as horas que antecediam as grandes viagens pelas planuras e montanhas do Sul de Angola.
Os homens punham-nas em ordem, recuperavam-lhes mazelas de estiradas anteriores, limpavam-nas, acarinhavam-nas.
Elas possuíam três corpos distintos, o que as tornava extraordinariamente manobráveis nas apertadas passagens das serranias africanas. O maquinista seguia no corpo do meio. No da retaguarda recolhia-se o combustível (lenha, carvão). No da frente, fruto das fornalhas incandescentes, acumulava-se a tremenda pressão do vapor que as fazia poderosas e imparáveis.
Chegado o grande momento abandonavam o refúgio para irem "formar comboio". Resfolegando - fschhhhh... - alinhavam diante da estação com as carruagens e os vagões. Sempre resfolegando - fschhhhh... - aprontavam-se para o primeiro avanço depois de recolherem tripulações e passageiros. Despedidas derradeiras. E o último aviso-chamada da "Garratt", o apito imperativo e forte, que soaria amiúde durante as centenas de quilómetros da viagem.
De súbito, com ruídos sincopados e fortes, a máquina punha-se em movimento. Tchan-tchan-tchan... - Tchan-tchan-tchan... - Tchan-tchan-tchan...
Cilindros, êmbolos, pistões, bielas, eixos das rodas, tudo trabalhando em perfeita sincronia numa nuvem rumorosa de vapor branco, emprestando vida e movimento àquele corpo imenso de metal escuro. A princípio lentamente, com uma espécie de preguiça mecânica, logo depois com outro balanço, a seguir preparando-se para as grandes velocidades do caminho. Fu-ca-tchi...- fu-ca-tchi... - fu-ca-tchi... Lubango, aqui vamos nós.
Na despedida de Moçâmedes, a "Garratt" tinha de transpor a ponte do rio Bero, nas "Hortas", um oásis de verdes intensos abençoado pelas cheias periódicas do rio.
"Nestas paragens os rios mantêm-se secos na maior parte do tempo. Porém (...), dá-se nos primeiros meses do ano uma extraordinária metamorfose, quando os ventos empurram até ao planalto as gordas nuvens fuliginosas das chuvas torrenciais. As águas despenham-se então para oeste ao longo das vertentes da Chela, alagam as depressões das terras baixas e originam enxurradas tumultuosas ao correr das nervuras fluviais que procuram o oceano. No fim das chuvas subsiste durante algum tempo a correnteza mansa, pouco rumorosa, de vários rios, que deslizam através do deserto por leitos de areia macia, orlados, aqui e ali, por canaviais e arbustos rejuvenescidos (...).
As águas não tardam a sumir-se, engolidas pelo solo poroso e ávido. Em inúmeros locais, porém, conservam-se vastos lençóis de águas subterrâneas, que se podem alcançar com escavações superficiais. Formam-se também depósitos abundantes de detritos orgânicos, arrastados pelas cheias. São adubos preciosos, que favorecem o verdejar repentino de plantas nutritivas, excelentes para o gado e para a multidão de herbívoros selvagens que por ali se movimentam." (2)
"A vinda periódica das águas explica a persistência da vida nesses lugares tocados por uma espécie de irrealidade magnética, feita de dias luminosos e chamejantes que, na época própria, se submergem em mantos vaporosos de cacimbo impenetrável.
Este é um mundo impregnado de aromas intensos e envolventes, desprendidos de um misto de madeiras secas, lodos antigos, maresias penetrantes, capins calcinados e fumosidades longínquas transportadas nas abas do vento desde povoados escondidos. Terá sido em parte aquele magnetismo, aliado à possibilidade da vida, o poderoso instigador da atracção que levou os invasores hereros, primeiro, e os conquistadores portugueses, mais tarde, a tenazes acções de fixação nesses ermos de sol e sede." (2)
Primeiras paragens: o Saco (onde mais tarde se construiria um porto gigantesco para escoamento do minério de Cassinga) e o Giraul. Forcejando, forcejando, a máquina galga depois milha sobre milha, na paisagem escalvada.
E apita, apita, no seu aceleradíssimo e imparável fu-ca-tchi...- fu-ca-tchi...- fu-ca-tchi...
E apita de novo. Que som este!
Quem alguma vez ouviu o chamamento de uma "Garratt" jamais o poderá esquecer. É um silvo simultaneamente rouco, estridente e lancinante. É um grito de coisa viva e pensante, não de máquina inerte e bruta. Tanto pode soar a queixume como a brado de triunfo, tanto é apelo como despedida, tanto traduz alegria como raiva.
A voz vibrante de uma "Garratt" é um dos sons mais inebriantes e comoventes que se podem escutar.
Já se vêem as penedias vizinhas da Raposeira, que anunciam as do Caraculo.
"O terreno tem a violência bárbara dum inferno escalvado. A marginar a linha, pedregulhos sobre pedregulhos parecem construções ciclópicas executadas por mãos ciclópicas. De vez em quando surgem grandes morros pelados, de pedra lisa, duma fealdade nua e parda - semelhando, nas suas formas estranhas, bossas de camelos ou dorsos de tartarugas." (3)
Agora procuram-se as terras do Luso, do Cuto, do Munhino.
Numa carruagem ouve-se um acordeão de estudantes (será o Nelson, de Moçâmedes?), soam as sentenças solenes do Carlos, "O Mosca", estalam gargalhadas desprendidas e jovens. Fala-se com súbita gravidade da presença numerosa de leões na zona, sobretudo no Cuto, que é o quilómetro 101.
Por sobre tudo isto, o fu-ca-tchi ... fu-ca-tchi da "Garratt", o odor intenso da sua fumarada, a magia da nossa África (4).
"Horas e horas o comboio arfa pelo deserto despido; as paragens, não tendo particularidade que as caracterize, são conhecidas pela numeração quilométrica; e o som do êmbolo, matraqueando rudemente, é o único ruído que acorda o silêncio morno e abafado do areal infinito." (1)
Rios secos, águas ocultas, vida fervilhando em redor...
Fu-ca-tchi... - Fu-ca-tchi...- Fu-ca-tchi... (4)
"Errando pelo interior desértico ou semidesértico, meteram por caminhos que iam subindo devagar ao longo de ravinas, planuras e montes cónicos isolados." (2)
Aqui e ali, vidas fugidias de guelengues, espantados pelo silvo da "Garratt", confundidos com o seu bafo escuro...
Já se deixou para trás o Munhengo, logo depois Assunção, vieram a seguir as Gargantas (a Grande e a Pequena). A "Garratt" progride em grande velocidade, acerca-se da sua maior adversária antes de chegar ao destino.
"Agora o terreno agita-se um pouco. Pequenas ondulações sucedem-se. E à nossa frente, lá ao longe, elevam-se os degraus da serra da Chela, negros e verticais, singularmente recortados no céu (...) Entre eles destaca-se o Morro Maluco (Cha-Malundo), cuja conformação é realmente caprichosa, recurvado como uma garra." (1) (4)
É agora, só mais um esforço! Sopra a "Garratt" afanosa, silva, matraqueia, devora espaços - desejosa do maior dos combates...
E, de repente, ao quilómetro 186, a barreira esmagadora da Serra da Chela, o grande obstáculo que separa a "Garratt" de Sá da Bandeira (Lubango)!
Aos pés da montanha imponente, o casario raso, colorido e ameno da bela Vila Arriaga (Bibala).
Lá no cimo, como um rasgão trágico, o corte mítico da Tundavala.
"De súbito, depararam com as escarpas da Chela, cujas cristas rompem os céus a mais de dois mil e trezentos metros de altitude. A partir do cume, esta região, planáltica, baixa aos poucos para leste até formar a bacia do Cunene, o lendário rio que, descrevendo uma curva descomunal, abraça todo o Sudoeste angolano até ao mar. Foi junto ao sopé desses imponentes paredões que os pastores detiveram o passo num primeiro momento." (2) (4)
Foi aqui também que a "Garratt" se deteve, a ganhar forças e balanço.
Daqui a uns minutos, será a última batalha da minha máquina indomável.
(1) Gastão Sousa Dias - África Portentosa - Seara Nova - Lisboa - 1928.
(2) José Bento Duarte - Senhores do Sol e do Vento - Editorial Estampa - Lisboa - 1999
(3) José Maria d'Eça de Queiroz - Seara dos Tempos - Edição do autor - Sem data
(4) Esta foto, como algumas mais desta viagem (sobretudo as da Bibala e da Chela), são de Okawa Ryuko, que já temos citado e voltamos a recomendar vivamente. Blogue: Angola: Huíla Namibe Kunene Luanda.
Passei por aqui e gostei
ResponderEliminarCumprimentos
www.princesa-do-namibe.blogspot.com