" (…) Os Bosquímanos, um dos ramos do grupo khoisan, fizeram frente a um destino mais tormentoso do que o dos seus irmãos hotentotes. Isto porque o avanço dos trekboers para leste se realizou muitas vezes através dos seus campos de colheita e caça, tornando o choque inevitável.
Assemelhando-se a mongóis de cabelo encarapinhado, eles palmilhavam, livres e infatigáveis, no seu caminhar gracioso e saltitante, as extensões poeirentas do karroo. Deslocavam-se em grupos cujo efectivo rondava, em média, a dezena e meia de pessoas.
Campeões da sobrevivência, predadores superdotados, extraíam proveito de tudo o que obtinham daquele meio agressivo e avaro - desde os tubérculos aos cágados, passando pelos pássaros e o mel, as bagas e os ovos, as larvas e os gafanhotos, as toupeiras e as térmitas.
Com o auxílio de caniços sorviam de solos queimados, aparentemente enxutos e estéreis, a água preciosa e vivificante, que recolhiam em cabaças, bexigas de animais ou cascas de ovos de avestruz.
Nas caçadas untavam as pontas das flechas com venenos violentos, tirados de vegetais, de cabeças de víboras ou de uma providencial larva de lagarta. Utilizavam cães para desentocar as rapidíssimas lebres saltadoras e capturavam os animais de maior porte em grandes fossas de fundo armadilhado com estacas aguçadas. À noite recolhiam-se a choças temporárias e saudavam, sempre que ocorria, o aparecimento da lua cheia, onde pairavam os espíritos dos seus mortos.
Na altura em que as caravanas bóeres principiaram a devassar-lhes o território, os Bosquímanos ripostaram tal como haviam feito os seus antepassados diante das invasões dos negros bantos.
Não tardou que se decidissem por audaciosas incursões, durante as quais, recorrendo a estratagemas de caça, se acercavam à sorrelfa dos rebanhos dos invasores para lhes subtraírem algumas cabeças.
Por vezes levavam mais longe as suas iniciativas, não hesitando em atacar os brancos que surpreendiam isolados no mato. Mas os belicosos calvinistas, nada dispostos a renunciar ao que entendiam ser os caminhos da sua predestinação, constituíam de facto uma nova e temível espécie de inimigo para o povo san.
Organizados em comandos de voluntários, eles devolviam com impiedosa crueza todos os golpes e ameaças. Certa ocasião, no derradeiro quartel do século XVIII, um comando de duzentos e cinquenta bóeres levou a cabo uma devastadora acção de represálias.
Por trágica ironia, faziam-se acompanhar de muitos auxiliares hotentotes, incorporados nas suas caravanas como fiéis servidores. No termo da operação, tinham sido aniquilados mais de cinco mil bosquímanos.
Sem possibilidade de reacção eficaz diante daquelas vagas de intrusos que os acossavam por todo o lado, cuspindo um fogo mortífero do cimo dos cavalos, os minúsculos caçadores do mato viram-se banidos dos seus territórios. Varridos para leste e para norte, só lhes restou acolherem-se, como proscritos, às estremas adversas dos grandes desertos.
À semelhança do que sucedera na época das lutas contra os Bantos, os Khoisan deixaram registo, nos rochedos do Cabo, do seu fatídico encontro com os brancos. Trata-se de desenhos toscos, de uma comovente expressividade, de cujo traço ingénuo parece soltar-se uma silenciosa mas pungente inquietação. Ou, então, o pulsar de uma ameaça mortal.
Num deles sobressai um vistoso galeão, porventura observado numa das baías de aguada. Exibe a proa erguida, o esporão arrogante, os pavilhões orgulhosamente desfraldados no topo de quatro mastros nus.
Noutras representações divisam-se europeus de cabeças sombreadas por chapéus de aba larga, empoleirados em cavalos altivos, e as avantajadas mulheres holandesas de grossas ancas realçadas por saias em balão.
Aparece ainda, como que dotado de movimento, um dos característicos carros de bois das deambulações migratórias: transporta um animado grupo de homens, mulheres e crianças gesticulantes.
São figurações de intenso e incomodativo dramatismo. Se forem olhadas longamente e com vontade de sentir, deixam adivinhar murmúrios, risos e clamores desprendidos do fundo dos tempos.(...)" (*)
(*) José Bento Duarte - Senhores do Sol e do Vento - Histórias Verídicas de Portugueses, Angolanos e Outros Africanos - Editorial Estampa - Lisboa - 1999
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