"(...) Quando principiaram a assenhorear-se da região do Cabo, os Calvinistas depararam com bandos errantes de pequenos homens de epiderme castanho-amarelada, olhos oblíquos, faces ossudas e precocemente enrugadas e cabelos dispersos em tufos encarapinhados.
A cor e os traços fisionómicos dessa gente, que se exprimia num dialecto pontuado de estalidos, não apresentavam semelhanças com os dos povos africanos encontrados a norte. Tratava-se dos Hotentotes, ou Khoi-Khoi, e dos Bosquímanos, ou San, modernamente agrupados sob a designação de Khoisan. Os Bosquímanos viviam em exclusivo da caça e da recolecção, ao passo que os Hotentotes acrescentavam a criação de gado a tais actividades.
Estes seres constituíram, desde tempos sem memória, os primitivos habitantes de grande parte dos espaços africanos. Surpreendidos em épocas remotas pelas invasões de negros bantos oriundos do Norte, viram-se batidos e empurrados para sul e sudoeste do Continente, inexoravelmente esbulhados das pastagens e dos territórios de caça.
Para sobreviver, refugiaram-se nas periferias dos desertos ou procuraram as franjas costeiras de menor fertilidade. Gravaram para a posteridade, em cavernas e rochedos dispostos ao longo dos caminhos da fuga, dramáticas figurações dos seus recontros com aqueles negros enormes e robustos, de pele retinta e olhos salientes, que lhes iam subtraindo os domínios ancestrais. (…).
Certos viajantes e exploradores europeus deixariam dos Khoisan algumas repugnantes descrições. Não hesitaram em apresentá-los, de pena ligeira e cheios de suficiência, como estúpidos, feios e horrendos, talvez mais próximos do irracional do que do ser humano.
Estas desapiedadas impressões, caso fossem levadas ao conhecimento daqueles entes minúsculos e engenhosos, maravilhosamente adaptados ao seu meio, dotados de apurada sensibilidade e cultores de um refinado sentido de humor, suscitariam decerto entre eles a hilaridade ou um pasmo escandalizado.
Com efeito, desde as deambulações do português Bartolomeu Dias pela região, os Khoisan jamais tinham deixado de emocionar-se com a terrífica aparência desses mareantes de tez leitosa e descomunais narizes afilados, os lábios finos e os olhos arregalados, as barbas hirsutas e as cabeleiras esvoaçantes, os enormes corpanzis semeados de pêlos como os dos macacos.
Os forasteiros exibiam-se por vezes cobertos de estranhas carapaças metálicas ou de trajos espessos que os faziam suar abundantemente. Possuíam a inquietante faculdade de mudar de cor sempre que se encolerizavam ou quando se entregavam a esforços intensos. Nessas ocasiões, em que as faces se lhes tingiam de um vermelho carregado, tornavam-se verdadeiramente pavorosos.
Como se não bastasse, dedicavam-se a manobras e cerimónias nebulosas, que incutiam o receio e a suspeita nas gentes do Cabo: arrastavam para bordo, em grandes recipientes, quantidades prodigiosas de água das nascentes, deixavam nas praias, devorados pelas chamas, alguns dos navios em que se tinham feito transportar e, espanto dos espantos, enterravam no chão esquisitos objectos de pedra ou madeira, em volta dos quais entoavam depois, de joelhos em terra, longas e graves lengalengas na sua fala incompreensível.
Não admira que, mal os navegadores lhes davam as costas e se sumiam de novo no mar, os Hotentotes caíssem com ligeireza sobre essas ameaçadoras construções e procurassem reduzi-las a pedaços, esconjurando qualquer efeito maléfico que delas pudesse desprender-se. (...) (*)
(*) José Bento Duarte - Senhores do Sol e do Vento - Histórias Verídicas de Portugueses, Angolanos e Outros Africanos - Editorial Estampa - Lisboa - 1999)
(Continua)
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