O então capitão Otelo Saraiva de Carvalho, que cumpriu serviço militar na antiga colónia portuguesa da Guiné-Bissau (de 1970 a 1973), narra no livro Alvorada em Abril diversos episódios do seu convívio com o general António de Spínola, à época governador e comandante-chefe das Forças Armadas naquele território.
Líder carismático e temerário, mestre nos grandes gestos e na forma de lhes dar publicidade – e já famoso no país e fora dele por causa disso -, Spínola raramente sai sob luz favorável dessas memórias do seu subordinado (como se viu aqui).
Resulta da obra que Otelo não gostava nem um pouco do general, talvez porque tenha caído por diversas vezes no seu desagrado ao ponto de se ver publicamente contrariado e repreendido por ele.Terá sido por isso que passou a valorizar mais os
defeitos do que as qualidades de Spínola. Como ele próprio confessa, via nele [em
Spínola] o adversário que se admira e respeita e não o chefe que se ama. Não me
deslumbrava de forma alguma. Antes fazia nascer em mim a quase necessidade
física de o afrontar.
Não deixa de ser irónico que, após o golpe de Estado de 25 de Abril de 1974, Otelo tenha assistido, contrariado, mas sem nada poder fazer, à entrega do poder a Spínola (feito presidente da Junta de Salvação Nacional que passou a governar o país).
Não era aquilo que ele, e outros revoltosos, pretendiam fazer (eles
pensavam noutra figura para esse cargo – o discreto, lacónico e algo ambíguo general
Costa Gomes).
Porém, o prestígio de Spínola em Portugal era, nessa altura, esmagador
e imbatível – sendo praticamente impossível afastar das suas mãos, naquele dia,
as rédeas do poder.
Um dos episódios da Guiné-Bissau que melhor demonstram o que antecede deu-se em 10 de Junho de 1973, no então chamado Dia da Raça, data escolhida para homenagear, em vida ou postumamente, aqueles que, segundo os critérios reinantes, mais se haviam distinguido nas acções anti-guerrilha.
Nesse dia, mergulhado nas funções de
retaguarda que lhe incumbiam, Otelo de Carvalho viu-se responsável pela
organização das cerimónias na Praça do Império, em Bissau. No comando das
“operações”, diligenciou, pois, para que tudo decorresse a contento.
Tratou da disposição das tropas, das bandeiras, das fanfarras, das tribunas para as altas
entidades, os familiares e os convidados. Tudo previsto, tudo calculado,
repetido até ao pormenor, resumiu Otelo, convencido de que nada poderia
falhar.
O momento alto das cerimónias era, naturalmente, o da imposição de condecorações, que tinha lugar logo a seguir aos discursos.
Os condecorados do dia, bem
ensaiados, sabiam perfeitamente o que fazer: em grupos de quatro ou cinco
galgavam a escadaria do palácio, perfilavam-se perante Spínola, faziam
continência e esperavam que alguma das entidades presentes lhes impusesse a
medalha conquistada (podia ser, ou não, o governador).
No patamar da escadaria, Otelo Saraiva de Carvalho controlava de perto o desenrolar da cerimónia e a sequência das condecorações.
Spínola, e as demais entidades
condecorantes, lá iam pendurando ao peito dos homenageados, negros e brancos,
sem incidentes, a expressão da gratidão pátria.
Otelo, descansado, via como as
coisas fluíam normalmente, conforme o planeado, tudo indicando que seria um dia
perfeito.
Todavia, já a cerimónia ia adiantada, algo de inesperado aconteceu: o
comandante-chefe, general Spínola – logo ele… - havia interrompido a tarefa e, claramente agastado, de medalha na mão, diante de um militar guineense, resmungou para Otelo: Isto aqui não está bem. Este gajo que está à direita devia estar à
esquerda e aquele que está à esquerda é que devia estar aqui.
E continuava com
a medalha suspensa.
Otelo procurou acalmá-lo, dizendo que estava a controlar a sequência das condecorações: não vislumbrando qualquer lapso, pediu ao general que continuasse.
Spínola, ainda que visivelmente contrariado, lá se decidiu a pendurar aquela medalha no peito do herói. Tudo parecia ter voltado aos carris, mas foi sol de
pouca dura.
Sem que nada o fizesse prever, o governador tornou a interromper a cerimónia
e, por sua iniciativa e em directo comando, fez com que se alterassem as posições
dos homens a condecorar, com passos laterais à direita e à esquerda, numa
enorme confusão extraprograma, até que cada militar ficou, exactamente, na
posição indicada por ele.
O "Velho" baralhou todo o esquema organizativo, sobressaltou-se Otelo. Felizmente, por qualquer espécie de milagre, não houve, apesar das
trocas de posições, medalhas erradamente atribuídas e a cerimónia chegou ao fim
sem outros incidentes.
À tarde, como era costume, houve um lanche ao ar livre para os militares condecorados, com a presença dos familiares.
O general Spínola, que presidia ao
repasto, chamou o chefe da repartição de quem Otelo dependia, um major, e
disse-lhe que as coisas tinham corrido muito bem nessa manhã. Mas rematou: Só
foi pena aquele engano, aquela troca dos rapazes na altura das condecorações,
porque de resto estão de parabéns.
O major, aliviado, agradeceu e confessou que, de facto, o erro tinha sido da sua repartição – devido à inexperiência… -, mas que a pronta reacção do general tinha permitido dominar a situação sem problemas de maior.
Otelo, que ouvia a
conversa, sentiu-se indignado e, munido de fotografias da cerimónia do ano
anterior, procurou demonstrar a Spínola que não tinha havido erro nenhum.
O
general, zangado, interrompeu-o abruptamente: Homem, esteja calado, não me
interessam os seus argumentos. Já lhe disse que os homens estavam trocados.
Otelo tentou insistir, mas Spínola cortou bruscamente a conversa: Acabou, já
lhe disse. Não me interessam os seus argumentos.
Mais tarde, falando com alguém melhor conhecedor da maneira de ser e das particularidades de Spínola, Otelo julgou ter descoberto o verdadeiro motivo de toda a confusão criada – a interrupção da cerimónia, a alteração das posições dos militares e a teimosia do general quanto à justeza do que tinha feito.
Segundo Otelo, tinha sido inadvertidamente descuidado um importante pormenor na
distribuição das medalhas pelas diversas entidades que acompanhavam Spínola: é
que, por duas vezes (e por mero caso) tinham calhado ao comandante-chefe dois
militares guineenses de elevada estatura, muito mais altos do que ele.
Assim,
no momento da condecoração, o general fora obrigado a olhar para cima, ficando
pendurado no peito do homem.
E Otelo,
com razão ou sem ela, encerra o episódio com um comentário melancólico: Daí o
agastamento do general. Ele não podia confessar ser este o verdadeiro motivo da
sua atitude. Logo, o que estava errado era a colocação dos militares! Nem mesmo
a melhor organização pode resistir a estes imponderáveis…
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