... e, entretanto, espreitando o episódio a partir do Além em que repousa há séculos, o grande Condestável, D. Nuno Álvares Pereira (1360-1431), deve ter-se sentido muito orgulhoso pela proeza deste seu pequeno mas admirável descendente...
O Noah |
Em 16 de Junho passado, quarta-feira, entre as cinco e as oito da manhã, o pequeno Noah, de dois anos e meio – filho de Rita Caupers de Bragança e de
Leandro Fans –, desapareceu da casa dos pais, situada na pequena aldeia
portuguesa de Proença-a-Velha, distrito de Castelo Branco, território de matos,
florestas, riachos, socalcos e poços. Com ele se sumiu Melina, sua fidelíssima
cadela.
O
desaparecimento do menino mergulhou em angustiada espera a
família e o país inteiro. Buscas porfiadas nas redondezas, levadas a
cabo por militares, polícias, voluntários civis, drones e cães treinados, não
produziram resultados. E assim, com uma noite de permeio, se foram escoando cerca de trinta e seis horas
de agonia. Ninguém augurava nada de bom acerca do
destino do bebé, a penar ao relento, sem comida nem água.
Na
comunicação social aventavam-se as hipóteses do costume, começando por rapto e culminando
num fim trágico da criança. Ficou logo patente que nenhum dos jornalistas e
opinantes conhecia bem o Noah e, sobretudo, a sua têmpera de rapazinho criado no
campo em relativa e saudável liberdade, sem grandes receios do escuro, dos
matos e dos papões.
O Noah e a sua amiga Melina |
Pensa-se que ele saiu de casa, pé ante pé, naquela madrugada ou manhã, enquanto a mãe e a irmã ainda dormiam. O seu objectivo era reunir-se ao pai nuns terrenos agrícolas próximos, como já fizera em outras ocasiões. Não o encontrando no sítio do costume, o Noah, seguido pela fiel Melina, resolveu partir à sua procura.
Infelizmente, e como, antes dele, aconteceu a tantos
exploradores e aventureiros com muito mais responsabilidades e meios de viagem
(Magalhães, Colombo…), o menino foi dar a territórios menos conhecidos e
acabou por perder o rumo - tal como aqueles navegantes o tinham perdido em
alto mar…
A primeira pista prometedora resultou da descoberta da cadela Melina, ao fim da tarde de 16 de Junho, perto de uma sebe, como se se mantivesse ali à espera do pequeno protegido. E as buscas convergiram para aquela zona. Depois foram sendo achadas peças de roupa de que o menino se foi desfazendo. E uma bota.
Entretanto, os “especialistas” afiançavam, com ar crescentemente suspeitoso, que era
impossível à criança livrar-se de tudo aquilo sem ajuda de “alguém” (decididamente,
eles não conheciam minimamente o Noah…). E veio a noite. E cresceu a angústia. O que seria
feito do bebé naquelas trevas?
Na
manhã seguinte, outras pistas demonstravam que o valente Noah se mantinha em
movimento. Num carreiro de lama ficaram gravadas umas pegadas minúsculas - minúsculas mas resolutas, um pé
calçado, outro descalço.
Pegadas do Noah. Um pé descalço, outro calçado... |
A Polícia estava já ciente de que não houvera rapto, antes um desaparecimento espontâneo. Os agentes tinham começado a perceber quem era o Noah e aquilo de que ele era capaz. Sabiam já que ele tivera que atravessar dois riachos, de águas baixas para um adulto, mas autênticos e desafiadores Amazonas para um pequeno viajante de dois anos e meio.
Daí, talvez, que ele tivesse resolvido despir as vestimentas encharcadas e incómodas. Ficou em pelota, é verdade, mas ficou confortável, com os movimentos mais leves e desembaraçados. E, provavelmente, terá bebido água das correntezas, assim se livrando de uma desidratação eventualmente fatal.
Mas por que razão se separara dele a cadela Melina? Os investigadores explicaram: detido pela sebe de uma propriedade, o Noah – magnífico exemplo de bebé sapiens - descortinou uma estreita passagem e, de corpinho miúdo e ágil, conseguiu enfiar-se por ela e prosseguir viagem.
A Melina, sempre fiel, tentou passar
também, mas, muito mais encorpada do que o seu protegido, não o pôde fazer. Mas que
tentou, tentou, pois deixou tufos de pêlo agarrados à sebe que, para seu
desespero, ficou a separá-la do Noah.
Em busca do Noah. À frente, o pai, Leandro, com a cadela Melina. |
Perto das oito da noite de quinta-feira, dia 17 de Junho (faz hoje um mês), chegou a notícia que aliviou, alegrou e comoveu o país: o Noah tinha sido, finalmente, encontrado. Mas julgam que ele se achava caído, rastejante, rendido ao pavor e à desdita de se saber só e desprotegido? Qual quê! Em pelota, tal como veio ao mundo, o valentíssimo Noah continuava em acção firme - de antes quebrar do que torcer -, buscando obstinadamente o caminho de casa e dos afectos familiares – com a mesma persistência e coragem de Fernão de Magalhães quando procurava a fugidia passagem que o conduziria do Atlântico ao Pacífico….
Apenas com uns arranhões, o Noah acabaria ao colo do pai, falador, perguntador – e triunfante.
O ponto em que foi encontrado dista, em linha recta, cerca de quatro quilómetros da
sua residência. Porém, levando em linha de conta que ele não pôde marchar a
direito – pois teve que contornar obstáculos e perigos diversos -, os investigadores
calculam que terá percorrido, ao longo das 36 horas de aventura, pelo menos
o dobro daquela distância…
Final felicíssimo da aventura, para descanso e júbilo de todos nós: o pequeno-grande Noah ao colo do pai. |
Os
comentadores do caso procuraram explicar, das mais variadas maneiras, a coragem e a capacidade de iniciativa e resistência da criança. Os mais certos serão,
provavelmente, os que as atribuem ao modo como tem sido criado – menino do
campo e da natureza, não uma criaturinha urbana e medrosa.
Outros deixam as coisas à magnanimidade de Deus-Pai e da Divina Providência. E
repetem, como diziam os de antigamente: ao menino e ao borracho põe Deus a mão por
baixo…
Há finalmente os que procuram nos ascendentes do Noah – ou seja, nos genes das gerações que lhe deram origem – a explicação de tudo. Os jornais, as rádios e as televisões noticiaram – acertadamente – que ele tem como bisavô materno um fidalgo escritor, Nuno de Bragança, personagem de vida aventurosa e pendores revolucionários.
Se se quisesse ir por aí, ter-se-ia muito por onde escolher. Na verdade, pelo lado de sua mãe, os antepassados do Noah constituem uma multidão de ilustres e de notáveis, uns mais façanhudos e apreciáveis do que outros, mas quase todos estreitamente ligados à História de Portugal.
Surgem, na extensa galeria de ascendentes do Noah,
vários marqueses (por exemplo, os de Valença, de Alegrete, de Penalva e de
Castelo Rodrigo); os duques de Lafões; e uma profusão de condes (de Vimioso, de
Vila Maior, dos Arcos, de Cantanhede). Descende, também, de alcaides famosos,
dos senhores da Azambuja, de um Marechal de Portugal. Entre muitos e muitos
outros.
Nuno Álvares Pereira, condestável de Portugal (um dos distantes avós do Noah) |
As tábuas genealógicas respeitantes ao Noah são indesmentíveis - qualquer um as pode consultar - e levam-nos bastante mais longe. Notem bem: ele descende do nosso primeiro rei, D. Afonso Henriques, e, portanto, através deste, dos antigos monarcas de Leão e Castela.
D. Pedro I e D. Inês de Castro – os dos amores desafortunados – são também seus avós distantes.
E, cereja no topo deste bolo genealógico, são igualmente seus
antepassados o mestre de Avis (rei D. João I) e o famoso condestável deste, D.
Nuno Álvares Pereira, os grandes triunfadores de Aljubarrota, em 1385 (aqui).
Mas será que toda esta cavalgada histórica de espíritos e de genes tem alguma coisa a ver com a aventura bem-sucedida do bebé-herói? Vá-se lá saber… Nós preferimos pensar que o Noah se salvou porque… é o Noah – o feliz resultado da educação e da preparação para a vida que os familiares lhe têm proporcionado ao longo dos seus dois anos e meio.
É claro que, depois do susto, haverá doravante, com toda a certeza, mais alguma cautela no tocante a portas deixadas abertas e sem guarda com o Noah do lado de dentro. Porque não devem restar dúvidas a ninguém: ele,
tal como o seu distante avô - o intrépido Condestável -, não é criatura que receie ou recuse
uma boa aventura, por mais arriscada que seja.
D.
Noah - ficou mais do que provado - é verdadeiramente digno de D. Nuno…
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