quarta-feira, 16 de junho de 2021

THOR HEYERDAHL e a espantosa viagem da jangada "KON-TIKI" (2.ª Parte - Entre céu e mar)

 

1.ª Parte --> aqui


Os primeiros dias da "Kon-Tiki" no mar

(descrição de Thor Heyerdahl)



"A organização do governo da embarcação era o nosso maior problema. A jangada fora construída exactamente como a haviam descrito os espanhóis, mas não existia nenhuma pessoa viva no nosso tempo que nos pudesse ministrar um curso prático de como governar uma jangada indígena.
 
À medida que o vento sueste aumentava em força, era necessário manter a jangada em tal marcha que a vela se enfunasse da parte da popa. A luta era árdua: enquanto três homens pelejavam com a vela, os outros três lidavam com o comprido remo de governo para pôr na devida posição o bico de proa da jangada, afastando-o do vento.
 
À tardinha, já o vento alísio soprava com toda a força. O resultado foi que o oceano se tornou agitado e roncador, enquanto as águas nos invadiam pela parte de trás. Ali, no vasto oceano, as coisas só correriam bem se as qualidades da jangada fossem realmente boas. Sabíamos que dali em diante não teríamos vento que soprasse para terra nem jeito de voltar atrás.



 
A única coisa a fazer era seguir avante a todo o pano; se tentássemos virar, derivaríamos em alto mar e com a popa para a frente. Só havia uma alternativa: navegar ao sabor do vento com a proa voltada para poente. Era essa, afinal, a meta da nossa viagem: acompanhar o Sol no seu curso, como supúnhamos que Kon-Tiki e os adoradores do astro-rei tinham feito quando foram postos em fuga do Peru rumo ao mar.
 
Já não havia dúvida de que havíamos entrado na parte mais vertiginosa da corrente de Humboldt. As ondas, tal como se apresentavam, pertenciam a determinada corrente, não sendo apenas movidas pelo vento. Em toda a extensão que nos cercava, a água era verde e fria; as recortadas montanhas do Peru tinham desaparecido atrás, no meio de densas massas de nuvens.
 
Quando ouvimos o ruído generalizado do mar em torno de nós, subitamente abafado pelo silvo de uma vaga próxima, e vimos uma crista branca  vir, como que às apalpadelas, ao nível do telhado da cabina, esperámos sentir a massa de água despenhar-se sobre nós. Mas, de cada vez, era a mesma surpresa e o mesmo alívio. A "Kon-Tiki" calmamente meneava a popa para cima e erguia-se imperturbável, enquanto a massa de água lhe resvalava pelos lados. Então abismávamo-nos de novo no espaço compreendido entre duas ondas, aguardando outro embate.
 
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Sobre o dia a dia na jangada
 

Quanto a mim, tinha bastante que fazer com o diário de bordo, a colecção de plâncton, a pesca e as fotografias. Cada homem tinha a sua esfera de responsabilidade e nenhum se intrometia no trabalho alheio. As ocupações piores, como cozinhar e montar guarda ao remo de direcção, eram divididas igualmente entre todos. Cada um tinha de ficar junto do remo duas horas por dia e duas horas por noite. O serviço de cozinha era distribuído de acordo com uma escala diariamente renovada.
 
 
Havia poucas leis e regulamentos a bordo. Reduziam-se mais ou menos ao seguinte: o vigia nocturno devia ter uma corda em volta da cintura; a corda salva-vidas tinha um lugar certo; todas as refeições deviam ser feitas fora da cabina; o WC situava-se exclusivamente na mais afastada extremidade dos toros, à ré. Se era necessário tomar alguma decisão importante, reuníamo-nos em assembleia, discutíamos o assunto e resolvíamos o que havia a fazer.
 
Um dia ordinário, a bordo da "Kon-Tiki", começava com a obrigação, que incumbia ao último vigia nocturno, de infundir um pouco de vida no cozinheiro, sacudindo-o; este, estremunhado, arrastava-se para o convés húmido, onde já batia o sol da manhã, e punha-se a recolher os peixes-voadores que ali caíam.
Em vez de comer os peixes crus, conforme a receita tanto polinésica como peruana, fritávamo-los sobre o fogãozinho "Primus" colocado no fundo do caixote, solidamente amarrado ao convés, do lado de fora da porta da cabina.
 
Este caixote era a nossa cozinha. Nele, havia abrigo contra os ventos alísios de sueste, que, por via de regra, sopravam do lado oposto ao da nossa cozinha. Somente quando o vento e o mar atiçavam a chama do "Primus" é que esta ameaçava pegar fogo ao caixote. Certa vez, o cozinheiro adormeceu e o caixote ficou em chamas, que se comunicaram à parede da cabina de bambu. Mas o fogo foi depressa extinto, porque, afinal, a bordo da "Kon-Tiki" não tínhamos de ir muito longe para buscar água.
 
Raramente o cheiro de peixe frito lograva acordar os dorminhocos no interior da cabina, e, assim, o cozinheiro tinha quase sempre de espicaçá-los com um garfo ou de cantar o É a hora do rancho, de uma maneira tão desafinada que ninguém podia suportar o berreiro por muito tempo.
Se, ao longo da jangada, não se viam barbatanas de tubarão, o dia principiava com um ligeiro mergulho no Pacífico, seguido da primeira refeição, feita ao ar livre na beira da jangada. 


 
 
Companheiros e visitantes marinhos
 

Logo no primeiro dia em que ficámos sós no mar, reparámos nuns peixes que rodeavam a jangada, mas estávamos muito atarefados para pensarmos em pescarias. No segundo dia, deparou-se-nos um cardume de sardinhas e, logo depois, um tubarão azul de 2,40 metros veio rolar de barriga para cima, enquanto roçava na popa alagada da embarcação. Andou-nos rodeando por algum tempo, mas desapareceu quando, resolvidos a agir, pegámos num arpão.
 
No dia seguinte fomos visitados por atuns, bonitos e dourados, e quando um grande peixe-voador caiu na jangada, empregámo-lo como isco e imediatamente puxámos para dentro dois grossos dourados, respectivamente de 9 kg e e 16 kg cada um. Serviram-nos de alimento durante vários dias.
 
Quanto mais nos aproximávamos do Equador e nos distanciávamos da costa, mais comuns se tornavam os peixes-voadores. Quando, por fim, penetrámos na água azul, onde o mar rolava majestosamente, brilhante de sol e manso, vimo-los cintilar como uma chuva de projécteis, arrojando-se da água  e voando em linha recta até que a sua força voadora se esgotasse. Então desapareciam abaixo da superfície.
 
A nossa intimidade com o mar só foi verdadeiramente compreendida por Torstein - que dormia com a cabeça na soleira da porta da cabina - quando, uma manhã, ao acordar, encontrou uma sardinha no travesseiro. Pegou nela pela cauda e segredou-lhe que todas as sardinhas gozavam da sua simpatia. Mas depois sucedeu qualquer coisa que fez com que Torstein fosse procurar, para dormir, um lugar no alto de todos os trens de cozinha.
 
Isso aconteceu algumas noites mais tarde. Estava escuro como breu, e Torstein havia colocado a lâmpada de parafina perto da cabeça. Por volta das quatro horas, acordou com a lâmpada revirada e uma coisa fria e húmida a roçar-lhe pelas orelhas. "Peixe-voador", pensou, tacteando no escuro a ver se o agarrava para o atirar longe. Pegou assim numa coisa comprida e molhada que se agitava como uma cobra, mas largou-a ao perceber que as mãos lhe ardiam como se estivessem queimando. O visitante invisível enroscou-se e escapuliu-se, indo passar por cima de Herman, enquanto Torstein procurava acender a lâmpada. Herman também acordou assustado, e isto, pondo-me igualmente desperto, lembrou-me o polvo que, naquelas águas, surgia à noite.
 
Depois que conseguimos acender a lâmpada, Herman, triunfante, estava sentado, segurando o pescoço de um peixe comprido e fino que se retorcia nas suas mãos como uma enguia. Tinha uns 95 centímetros de comprimento, era delgado como uma serpente, possuía feios olhos pretos e longo focinho com uma voraz mandíbula cheia de dentes afiados como navalhas.

Sob a pressão dos dedos de Herman, o animal regurgitou dois peixes brancos de cerca de 20 centímetros. Eram claramente duas "vítimas" que habitavam as grandes profundidades, e estavam bastante maltratados pelos dentes do peixe-cobra. 

Bengt também acordara afinal com o barulho, e assim aproximámos do nariz dele a lâmpada e o comprido peixe. Estremunhado, sentou-se no seu saco de dormir e proclamou, com solenidade: Não, peixe assim não existe. E, virando-se pacatamente para o lado, tornou a adormecer."

(Continua em 19-Junho-2021 - 3.ª Parte --> aqui)
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