sábado, 6 de fevereiro de 2021

Henrique Galvão e o assalto ao navio português "Santa Maria" (1961)

 


Há sessenta anos, em Janeiro de 1961, António de Oliveira Salazar era o primeiro-ministro de Portugal. Estava no cargo desde 1932 e nele se manteria até 1968. Presidindo com mão de ferro a um regime ditatorial, tivera que enfrentar durante o seu consulado diversos ataques dos adversários - em acções por vezes violentas.

Nesse princípio de ano estava em preparação outra iniciativa desse tipo, congeminada pelo capitão Henrique Galvão, outrora salazarista convicto, mas que há muito se rebelara contra o regime, vendo-se por isso forçado a um exílio na América do Sul.

Associado a Jorge de Sottomayor, um espanhol empenhado em derrubar o ditador Francisco Franco, integrou o chamado Directório Revolucionário Ibérico de Libertação (DRIL) e foi planeando um golpe espectacular: nada mais nada menos do que o sequestro e desvio do navio Santa Maria, luxuoso paquete português pertencente à Companhia Colonial de Navegação.

A acção recebeu o nome de Operação Dulcineia e o comando que a executaria seria composto por portugueses e espanhóis. Henrique Galvão assumiria a liderança, coadjuvado por Jorge de Sottomayor.

Relativamente aos contornos da operação, Galvão tinha-se entendido com Humberto Delgado, outro exilado português. Delgado, que fora também um homem do regime, tornara-se, tal como Galvão, acérrimo inimigo de Salazar, tendo concorrido às eleições presidenciais de 1958 com o declarado propósito de o demitir.
Derrotado nas urnas (o eleito acabou por ser Américo Tomás, afecto ao regime), proclamaria até ao fim da vida ter sido vítima de fraude eleitoral.
Agora, à distância, no seu exílio do Brasil, aguardava ansiosamente o desfecho da Operação Dulcineia.

Henrique Galvão após a tomada do Santa Maria
(é o terceiro a contar da esquerda no primeiro plano, fardado, de mãos cruzadas).
Rodeiam-no alguns passageiros, elementos da tripulação e membros do comando de assalto.

O golpe ocorreu na noite de 21 para 22 de Janeiro de 1961, completaram-se há dias sessenta anos.
O navio largara de Lisboa para Miami no dia 9 desse mês, iniciando assim uma das suas habituais viagens turísticas pela América Central. No momento do ataque teria 612 passageiros a bordo, incluindo um numeroso contingente de norte-americanos, e 350 tripulantes. Estava no entanto longe da lotação esgotada, pois podia alojar 1200 passageiros.

No dia 20, o Santa Maria fez escala no porto venezuelano de La Guaira, altura em que 20 elementos do DRIL, pertencentes ao grupo de assalto, aproveitaram para entrar no navio como se fossem passageiros normais. Henrique Galvão não se achava entre eles: embarcaria no dia seguinte, em Curaçao, acompanhado de mais três elementos. Achava-se desse modo completo o grupo de 24 homens que levaria a cabo a operação.

Conforme fora planeado, Henrique Galvão desencadeou o assalto em pleno mar do Caribe, às primeiras horas do dia 22, quando o Santa Maria navegava rumo a Port Everglades, na Flórida.

No ataque à ponte de comando e à cabina de rádio, a quase totalidade dos oficiais e marinheiros de serviço foi rapidamente dominada, com excepção do 3.º oficial João José do Nascimento Costa, que ofereceu corajosa resistência aos assaltantes. Foi implacavelmente morto a tiro. Com ele tombaram feridos mais alguns tripulantes (que seriam posteriormente desembarcados na ilha de Santa Lúcia para serem hospitalizados).

O Santa Maria estava em poder dos elementos do DRIL e passou a navegar para rumo desconhecido dos passageiros sequestrados.

3.º oficial Nascimento Costa,
morto pelos assaltantes

No plano inicialmente traçado por Henrique Galvão estava contemplada, a seguir à tomada do navio, uma iniciativa que tinha tanto de arriscada como de megalómana e irrealista. Ele afirmava-se disposto a rumar a Fernando Pó (hoje Bioko), então colónia espanhola no golfo da Guiné, próxima da costa dos Camarões, para, a partir daí, navegar para um ataque a Luanda, capital da colónia portuguesa de Angola.

Uma vez dominada a situação (como? com que meios?), esperava-se um levantamento revolucionário que, a prazo, acabaria com os regimes de Lisboa (Salazar) e de Madrid (Francisco Franco).

A ideia de que um grupo tão reduzido pudesse cometer uma proeza de tal monta faz pensar que, para além da evidente fanfarronada, o que se pretendia era a amplificação dos efeitos de propaganda política que a tomada do navio, só por si, já representava.

E não restam dúvidas de que, pelo menos nesse âmbito, a acção daqueles inesperados "piratas do mar" se revelou um sucesso, chamando a atenção do mundo para a situação política então vivida nos dois países ibéricos, sobretudo para a de Portugal, dado o mediatismo de Henrique Galvão e de Humberto Delgado.

Muitos estrangeiros terão ouvido pela primeira vez falar de Salazar e do seu regime, bem como da problemática colonial que colocava ao país um desafio gigantesco no futuro imediato. Após incidentes sangrentos em Luanda, poucos dias mais tarde - 4 de Fevereiro -, a luta de guerrilhas teria início em Angola com os ataques da U. P. A., a 15 de Março de 1961; e a guerra em três frentes - Angola, Moçambique e Guiné - só findaria treze anos depois, com a revolução portuguesa de Abril de 1974.


O Santa Maria vigiado de perto pelos seus perseguidores.

Fosse como fosse, sob as ordens dos assaltantes, o Santa Maria alterou bruscamente o rumo, passando a navegar para leste através do Caribe, no intuito de alcançar o Atlântico o mais rapidamente possível.

Como seria de esperar, o navio acabou por ser detectado - diz-se que por um cargueiro dinamarquês, que logo deu o alarme  e permitiu o avistamento directo por um avião norte-americano. A partir daí, o Santa Maria (que os assaltantes tinham entretanto rebaptizado como Santa Liberdade) passou a ser seguido por navios de diversa proveniência, mas sobretudo por vasos de guerra da marinha dos Estados Unidos (dada a presença a bordo de muitos turistas deste país).

O Santa Maria entre dois navios de guerra americanos


Pressionado pelas autoridades militares norte-americanas, que chegaram à fala com ele, Galvão aceitou finalmente rumar ao Brasil, entrando no porto do Recife a 2 de Fevereiro. Aí se procedeu ao desembarque de passageiros e tripulantes, tendo Humberto Delgado subido a bordo para se encontrar com o seu companheiro de luta.

Igual a si próprio, decidido a explorar o sucesso do assalto até ao fim, Galvão pôs a correr que se achava disposto a afundar o Santa Maria nas próximas horas. Mas era outra vez uma fanfarronada em busca de novos efeitos propagandísticos.

Garantido o asilo político pelo recém-eleito presidente do Brasil (Jânio Quadros), os assaltantes desembarcaram e entregaram-se às autoridades brasileiras.

Humberto Delgado (à esq.) conversa com Henrique Galvão a bordo do Santa Maria.
Quatro anos depois (13-Fevereiro-1965), Delgado acabaria assassinado em Espanha
por uma brigada da polícia política do regime salazarista.
Henrique Galvão morreria exilado em São Paulo, Brasil, a 25 de Junho de 1970.
Sofria, então, da doença de Alzheimer.

O Santa Maria seria depois devolvido à sua proprietária (a Companhia Colonial de Navegação). Saindo do Recife a 7 de Fevereiro, chegou embandeirado em arco, nove dias depois, à cidade de Lisboa.
Esperava-o uma festiva e impressionante multidão, bem como os principais dirigentes políticos portugueses, incluindo Salazar, que subiu a bordo.
Quando se dirigiu ao país, nessa mesma altura, o ditador foi muito parco em palavras: Temos o Santa Maria connosco. Obrigado, Portugueses!

Aguardado pela multidão, o Santa Maria sobe o rio Tejo, na chegada a Lisboa
(16 de Fevereiro de 1961)

I - Chegada do Santa Maria a Lisboa
(relato em castelhano)



II - Visita ao Santa Maria
(Vídeo de mkc1)





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