sábado, 28 de novembro de 2020

Nos tempos de D. Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal - A Morte de Gonçalo Mendes da Maia, o "Lidador" (1170)

 



No ano de 711, tropas muçulmanas do Norte de África, comandadas pelo berbere Tárique, deram início à invasão da Península Ibérica, destroçando em pouco tempo os exércitos visigodos que se lhes opuseram.
O domínio islâmico da Península manteve-se durante quase oito séculos, embora o território abrangido se fosse reduzindo ao longo dos séculos por força do processo da reconquista cristã.

Quando Tárique chegou, Portugal ainda não existia. Mas, desde o momento em que se firmou como nação independente a partir do pequeno Condado Portucalense, não mais deixou de ambicionar a dilatação das suas fronteiras. Participando no esforço da reconquista, como faziam Leão, Castela e Aragão, o país foi adquirindo a forma que tem hoje em pouco mais de cem anos, terminando a sua expansão no Algarve, a sul, no ano de 1249. [Pode relembrar as datas mais relevantes da independência de Portugal - aqui]

O episódio que hoje publicamos, com base na adaptação de um escrito de Alexandre Herculano(*), situa-se em 1170 e insere-se no referido processo de reconquista territorial. Decorre numa zona fronteiriça então precária, nas imediações de Beja, cidade actualmente pertencente ao Alentejo português.

Nele se narra a morte em combate de um dos grandes guerreiros de Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal: Gonçalo Mendes da Maia, denominado o Lidador.

(*) Alexandre Herculano - Lendas e Narrativas - Tomo II.
O texto foi actualizado, reordenado e adaptado na Torre da História Ibérica.
As quatro ilustrações que se seguem aos mapas resultam de trabalhos de banda desenhada de Eduardo Teixeira Coelho e Raul Correia.
A ultima pintura é da autoria de Roque Gameiro.


Expansão territorial portuguesa a partir do Condado Portucalense.


"Num dia do mês de Julho, duas horas depois da alvorada, no ano de 1170, tudo estava em grande silêncio dentro da cerca de Beja, no Alentejo. Batia o sol nas pedras esbranquiçadas dos muros e torres que defendiam a cidade. Ao longe, pelas imensas campinas vizinhas, ondeavam as searas maduras, cultivadas por mãos de muçulmanos para os seus novos senhores cristãos.

Nestas terras disputadas, a cruz impusera-se outra vez ao crescente; os topos das mesquitas convertiam-se em campanários de igrejas e a voz do almoadém era substituída pela toada dos sinos que chamavam à oração. Era esta a resposta dada pela raça goda aos filhos de África e do Oriente que diziam, mostrando os alfanges: “é nossa a terra de Espanha”. O dito árabe foi desmentido; mas a resposta gastou oito séculos a escrever-se.

Nesta luta de vinte gerações andavam lidando as gentes do Alentejo. O servo mouro olhava todos os dias para o horizonte, a sul, onde se viam as serranias do Algarve: de lá esperava ele a salvação ou, ao menos, a vingança. E este ameno dia de Julho devia ser um desses momentos por que suspirava o muçulmano: Almoleimar, o famoso guerreiro mouro, subira com os seus cavaleiros às terras de de Beja.

Como era Portugal um pouco antes deste episódio.
Beja foi conquistada aos mouros em 1162.

Nesse dia, em que Gonçalo Mendes da Maia, o velho fronteiro de Beja -  conhecido por O Lidador -, cumpria os noventa e cinco anos de idade, trinta fidalgos portugueses corriam à rédea solta por essas mesmas campinas de Beja. Trinta, não mais, eram eles, mas andavam por trezentos os homens de armas, os escudeiros e os pajens que os acompanhavam.

Entre todos avultava em robustez e grandeza de membros o Lidador, cujas barbas brancas lhe ondeavam, como flocos de neve, sobre o peitoral da cota de armas; a seu lado, cavalgava também o valente Lourenço Viegas, a quem, pelos espantosos golpes da sua espada, chamavam o Espadeiro.

Ao largo, muito ao largo dos muros de Beja, vai a atrevida cavalgada à procura de mouros; mas, por enquanto, não se avistam senão os topos pardo-azulados das serras do Algarve, que parecem fugir tanto quanto os cavaleiros avançam. Nem um pendão mourisco, nem um albornoz branco alvejam ao longe.

Os espiões cristãos seguem na frente da linha dos cavaleiros, correm, cruzam para um e outro lado, embrenham-se nos matos e transpõem-nos em breve. A terra que pisam é já dos mouros. Tinha passado meia hora.

Por mandado do velho fronteiro de Beja, um guerreiro acercou-se à rédea solta de um bosque extenso que surgia à direita. Pouco, porém, progrediu: uma flecha despedida dos bosques sibilou no ar. O homem gritou por Jesus: a flecha tinha-se-lhe embebido no lado. O cavalo parou de repente, e ele, erguendo os braços ao ar, com as mãos abertas, caiu de bruços, tombando no chão.



"A cavalo! a cavalo!" — bradou a uma voz toda a companhia do Lidador. Uma gritaria medonha soou ao mesmo tempo, vinda do pinhal da direita. “Alá! Almoleimar!” — era o que diziam os gritos.

Enfileirados em extensa linha, os cavaleiros muçulmanos saíram do escuro arvoredo que os encobria. O seu número excedia cinco vezes o dos soldados da cruz. As suas armaduras lisas e polidas contrastavam com a rudeza das dos cristãos, apenas defendidos por pesadas cervilheiras de ferro e por grossas cotas de malha do mesmo metal. Mas as lanças destes eram mais robustas e as suas espadas mais volumosas do que as cimitarras mouriscas.

Como longa fita de muitas cores, a extensa e profunda linha dos cavaleiros mouros sobressaía na veiga entre as searas que cobriam o campo. Diante deles, os trinta cavaleiros portugueses, com os seus trezentos acompanhantes, esperavam o brado de atacar, num combate de um contra dez.

As armas estavam preparadas:  o Lidador bradara por Santiago, e o nome de Alá soara num só grito por toda a fileira mourisca. Chocaram-se as hostes finalmente, como duas muralhas sacudidas por violento terramoto. As lanças, batendo em cheio nos escudos, tiravam deles um som profundo, que se misturava com o estalar das que voavam despedaçadas. Do primeiro encontro muitos cavaleiros vieram ao chão, de um lado e do outro.


Gonçalo Mendes da Maia avistou de súbito o terrível Almoleimar. As lanças dos dois contendores haviam-se feito em pedaços no choque inicial, pelo que o alfange do mouro se cruzou com a espada toledana do fronteiro de Beja.

Cerrando os dentes com força, o chefe mouro descarregou um golpe tremendo sobre o seu adversário. O Lidador recebeu-o no escudo, onde o alfange se embebeu por inteiro, e procurou ferir Almoleimar entre o fraldão e a couraça; mas a pancada falhou, e a espada desceu pelo coxote do mouro, que já desencravara o alfange.

Almoleimar atingiu a cervilheira de Gonçalo da Maia com violência. O velho fronteiro vacilou, deu um gemido, e os braços ficaram-lhe pendentes. A sua espada teria caído no chão se não estivesse presa ao punho do cavaleiro por uma cadeia de ferro. O ginete, sentindo as rédeas frouxas, fugiu pelo campo, a todo o galope. Mas o Lidador tornou a si: um forte puxão avisou o animal de que o seu cavaleiro não morrera.



À rédea solta, lá volta ao combate o fronteiro de Beja. Escorre-lhe o sangue pelos cantos da boca. Traz os olhos torvos de ira. Os dois inimigos correram um para o outro. As espadas reluziram no ar. Mas o golpe do Lidador era simulado, e o ferro, mudando de movimento no ar, foi bater de ponta no gorjal de Almoleimar, que cedeu à violenta estocada; e o sangue, saindo às golfadas, cortou a derradeira maldição do muçulmano.

Todavia, o golpe deste também não errara o alvo: vibrado com ânsia, colhera pelo ombro esquerdo o velho fronteiro e, rompendo a grossa malha do lorigão, penetrara na carne até ao osso. Ainda mais uma vez a mesma terra bebeu o sangue godo misturado com sangue árabe.

O Lidador caiu amortecido. Um dos seus homens de armas voou a socorrê-lo. Mas o último golpe de Almoleimar fora o brado da sepultura para o fronteiro de Beja: os ossos do seu ombro estavam como triturados, e as carnes rasgadas pendiam-lhe para um e para outro lado envoltas nas malhas descosidas do lorigão.

O Lidador foi posto em cima de umas andas feitas de troncos de árvores, e quatro escudeiros que restavam vivos dos dez que consigo trouxera tinham-no transportado para a cauda da cavalgada. Quando ele caiu, o grosso da hoste moura, vencida, fugia já para além do pinhal. Mas os mais valentes pelejavam ainda à roda do seu capitão moribundo. A vitória não saíra barata aos portugueses. Viam perigosamente ferido o seu velho capitão e tinham perdido alguns dos melhores cavaleiros e a maior parte dos homens de armas.



Foi nesta altura que se viu erguer ao longe uma nuvem de pó, que voava rápida para o lugar da batalha. Os mouros que fugiam deram meia volta e gritaram: Ali-Abu-Hassan! Só Alá é Deus, e Maomé o seu profeta!

Era, com efeito, Ali-Abu-Hassan, rei de Tânger, no norte de África, que chegava com mil cavaleiros em socorro de Almoleimar. Cansados de combater, reduzidos a menos de metade e cobertos de feridas, os cavaleiros de Cristo invocaram o seu nome e fizeram o sinal da cruz. O Lidador perguntou com voz fraca a um pajem que barulheira era aquela. “Os mouros foram socorridos por um grosso esquadrão”, respondeu tristemente o pajem. Gonçalo Mendes da Maia cerrou os dentes com força e levou a mão à cinta: buscava a sua boa espada toledana.

“Pajem, quero um cavalo. Onde está a minha espada?” O pajem deu-lhe a espada e foi pelo campo buscar um ginete, dos muitos que por ali vagueavam já sem dono. Quando voltou com ele, o Lidador, pálido e coberto de sangue, estava em pé. O pajem ajudou-o a montar a cavalo. E lá foi de novo o velho fronteiro de Beja! Parecia um espectro erguido em campo de finados, dirigindo-se para onde mais acesa andava a peleja.

Os cristãos afrouxavam diante daquela nova multidão de infiéis. Dois cavaleiros, porém, com vulto feroz e as armaduras crivadas de golpes, sustinham grande parte do peso da batalha. Eram estes o Espadeiro e Mem Moniz.

Quando o fronteiro assim os viu, algumas lágrimas lhe caíram pelas faces. Esporeando o ginete, com a espada erguida, abriu caminho por entre infiéis e cristãos e chegou aonde os dois, cada um com seu montante nas mãos, se batiam rodeados de inimigos. "Bem vindo, Gonçalo Mendes! — disse Mem Moniz. — Quiseste assistir connosco a esta festa de morte?"



E os três cavaleiros atiraram-se rijamente aos mouros. Depois de deixar amolgadas muitas armaduras mouriscas, o Lidador manejou pela última vez a espada e abriu o elmo e o crânio de um cavaleiro inimigo. O violento abalo que experimentou fez-Ihe contudo rebentar em torrentes o sangue da ferida que recebera das mãos de Almoleimar e, cerrando os olhos, caiu morto ao pé do Espadeiro e de Mem Moniz. Repousou, finalmente, Gonçalo Mendes da Maia de oitenta anos de combates!

Já a este tempo cristãos e mouros haviam descido dos cavalos e pelejavam a pé. Aumentava a crueza da batalha. Entre os cavaleiros de Beja espalhou-se logo a notícia da morte do seu capitão, e não houve olhos que ficassem enxutos. “Vingança!”, bradou o Espadeiro com voz rouca e rangendo os dentes.

Descobrindo Ali-Abu-Hassan ali perto, encaminhou-se para ele e atingiu-o com o seu montante. O elmo do rei mouro faiscou, voando em pedaços pelos ares, e, com o crânio fendido, ele tombou para sempre. "Lidador! Lidador!", gritou Lourenço Viegas, com voz comovida. As lágrimas misturavam-se-lhe nas faces com o suor, com o pó e com o sangue do adversário. E não pôde dizer mais nada.

Tão espantoso golpe, que implicou a perda do seu líder, aterrou os mouros. Os portugueses seriam já apenas sessenta, entre cavaleiros e homens de armas, mas continuavam a pelejar como desesperados. A morte de Ali-Abu-Hassan foi, todavia, o sinal de debandada para os muçulmanos.

Os portugueses, senhores do campo, celebraram com prantos a vitória. Poucos havia que não estivessem feridos; e nenhum que não tivesse as armas danificadas. O Lidador, e os demais cavaleiros que naquela memorável jornada tinham acabado os seus dias, foram conduzidos a Beja atravessados em cima dos ginetes."



Estátua de Gonçalo Mendes da Maia, o Lidador, na cidade de Beja (Alentejo - Portugal)



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