quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Um belo texto brasileiro sobre o padre António Vieira - "O Riso da Beleza e as Lágrimas da Arte"

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"Terminei de ler uma seleção de seis sermões do Padre Antônio Vieira.
Vieira é um jardim fecundo de aromas e estilos. Uma enciclopédia que abriga em si a ciência do cultismo, mas da simplicidade também.

Ele falava aos catedráticos, aos reis e rainhas, ao escol de tudo o que mais distinto havia, mas se pronunciava também aos índios e à gente simples da terra.

Falar de Vieira é afirmar a cristalização, a materialização de um gênio poderoso, que com a sua palavra arrebatava a platéia e dizia: “que o ouvinte não deveria sair contente com o pregador, mas triste consigo mesmo, pois se aconteceu isso é porque algo poderoso aconteceu àquele coração”.

Em Vieira é tão possível sair feliz quanto triste do sermão: triste pelos confrontos sugeridos em sua oratória imaculada; feliz pelas sentenças refinadas, brilhantes. Como ele mesmo atesta no Sermão da Sexagésima “cada palavra era um trovão, cada cláusula um raio, cada razão um triunfo”.

Assim era Vieira – um trovão do Céu, que assombrava e fazia tremer o mundo de sua época.


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A sua vida volumosa, cheia de acontecimentos significativos, já é um grande livro.

Nasceu em Portugal.
Veio para o Brasil ainda muito jovem.
Decide estudar para ser padre.
O pai não concordava com as intenções de Vieira. Tinha outras missões para o filho.

Quando no seminário, os padres começaram a perceber-lhe os prodígios, as habilidades, as larvas da inteligência que fervilhavam em seu potente cérebro.

Isso é tão significativo, que ainda não havia completado 18 anos, mas já era responsável por escrever em latim as cartas que seriam remetidas à Sé.

Foi enviado a Olinda como eminentíssimo professor de oratória.

Vieira parecia compreender que a palavra era uma grande arma, que ela poderia ser usada a favor da justiça. Ele usou a palavra para apaziguar os calores no Maranhão. Os ânimos dos colonos estavam eriçados, por causa do edito real a fim de que se libertasse todos os índios.


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O padre prega dois sermões impetuosos:

O Sermão das Tentações:

Que vós, que vossas mulheres, que vossos filhos, e que todos nós nos sustentássemos dos nossos braços; porque melhor é sustentar do suor próprio, que do sangue alheio;

e o Sermão de Santo Antônio (ou dos Peixes):

“A primeira coisa que me desedifica de vós – peixes – é que vós comeis uns aos outros. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos.
Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comessem os grandes, bastaria um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande e para que vejais como estes comidos na terra são os pequenos, e pelos mesmos modos que vós vos comeis no mar...”.

O que é impressionante em Vieira é saber como alguém consegue ser tão prolífico, tão erudito, tão intenso, tão profundo.

A sua inteligência era versátil. Passa-nos a impressão que tudo aquilo que lia conseguia assimilar sem qualquer titubeio.


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Vieira visitou os salões reais.
Viajou pelos locais mais afastados do Brasil.
Instalou-se no Maranhão.
Estendeu a missão jesuíta. Aprofundou a sua relação com os índios.

Era conhecido pelos índios como Paiaçu (grande padre).

Constituiu-se numa espécie de apóstolo da palavra. O termo apóstolus do grego significa “mensageiro”, “enviado”, “embaixador”, “ministro”, “caminhante”.
Foi o próprio Cristo quem chamou os seus discípulos de apóstolos. Eles seriam os pregoeiros das boas novas.

Vieira é o eminente “embaixador” da Palavra, que leva em seus lábios a certeza da equidade.
Para ele: "Subir ao púpito e não dizer a verdade era contra o ofício".
Por isso, todas as vezes que se colocava de pé com a missão de proferir o Evangelho, era invadido pelo calor do Espírito Divino.

Pregava com tamanha beleza e erudição; com uma inspiração tão irradiada, que os salões das igrejas ficavam pequenos para a quantidade de pessoas que iam ouvi-lo.

Esse poder de Vieira levou o poeta Fernando Pessoa a dizer que ‘se não houvesse mais ninguém para falar a língua portuguesa, mas se em compensação ficassem os sermões de Vieira, a língua lusa jamais morreria’.


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Em suma: Vieira consegue reunir em seus sermões o que de mais belo há na língua portuguesa.
Ele soube utilizá-la como ninguém.

Extraiu dela todo o encanto; os vernáculos harmônicos e dissonantes; a versatilidade e a flexibilidade dos termos necessários.
Proferiu com tamanha graça a língua de Camões, que ler os seus sermões após tanto tempo causa-nos uma impressão singular.

Neste ano de 2008 são completados quatro séculos do seu nascimento.
Ouvi poucos falarem desse acontecimento.
Até mesmo os estudantes de Letras não atentaram para o fato de que no dia 6 de fevereiro de 1608, nascia, em Lisboa, Antônio Vieira, estadista, teólogo, missionário, padre – e por que não dizer filósofo?

A homenagem que vi aconteceu na Câmara dos Deputados da República.

Ouvi José Sarney [Presidente do Brasil, 1985-1990] solitariamente proferir um discurso com rasgos de uma erudição afetada, tentando lançar luzes sobre as trevas da memória opaca da nação.

A pouca memória do país para com os seus ilustres personagens históricos não permitiu que rendesse a ele, Vieira, homenagens dignas, do mais alto jaez. 

Lamentavelmente a memória é suprimida, a História é apagada e os grandes homens de espíritos livres borrados e negligenciados.



Viveu 91 anos (morreu no dia 18 de julho de 1697).

Muito tempo para a expectativa de vida da época. Todavia, todo este tempo foi dedicado em sua integralidade à justiça e à defesa dos direitos humanos – especialmente dos índios.

Não poderia deixar de finalizar sem mencionar Vieira num dos sermões mais belos e altivos que já foram pregados – O Pranto e o Riso ou as Lágrimas de Heráclito defendidas em Roma pelo padre Antônio Vieira contra o Riso de Demócrito.

Este sermão foi proferido no Palácio da rainha Cristina da Suécia, no ano de 1674:

Quem verdadeiramente conhece o mundo, precisamente há de chorar; e quem ri, ou não chora, não o conhece”.

É pertinente dizer que a vida de Vieira foi bela por que riso; e foi arte por que lágrimas.
Ele conhecia o mundo e a alma humana como ninguém." (*)

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(*) Carlos Antônio Maximino de Albuquerque (Brasil).
(Em: "O Ser Carlino", Nov-2008)
Respeita-se a grafia brasileira.
(Ilustrações da responsabilidade da Torre da HI).




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