quarta-feira, 3 de junho de 2020

Sul de Angola - Os povos Nhaneca-Humbe em meados do século XIX



No mapa abaixo apresentam-se as zonas de fixação dos principais grupos étnicos de Angola, que foi colónia de Portugal até ao ano de 1975.

A localização dos povos Nhaneca-Humbe (que já conhecemos daqui e daqui) acha-se representada em azul claro, a sul do país, figurando uma espécie de funil com o bico virado para baixo...



… ou seja, e como se pode confirmar no mapa seguinte, ocupam maioritariamente a actual província da Huíla, com uma estreita penetração na província do Cunene até à fronteira com a Namíbia:





A. F. Nogueira, velho sertanejo português que passou parte da existência, a meio do século XIX, entre os povos do Sul de Angola - que ele apreciava e que igualmente o apreciavam a ele -, viu-se confrontado, na Europa, com opiniões que frequentemente apoucavam e rebaixavam o modo de vida e os costumes daquela gente.

Não raras vezes, esses homens e mulheres "do mato"  eram enquadrados como bárbaros e selvagens, cruéis e ferozes, e desconheciam todas as regras e deveres em que se fundavam as sociedades regularmente organizadas, ignorando todos os direitos...

Nogueira sabia, por um saber de experiência feito, que não era assim. E, indignado, resolveu então escrever num jornal português um extenso artigo em defesa desses povos, os Nhanecas-Humbes, que ele conhecia como ninguém.

É desse  artigo, publicado em 1871, que se transcrevem, com ligeiras adaptações, as principais observações do velho sertanejo.




A. F. Nogueira começou por esclarecer que vivera entre os Nhanecas-Humbes durante doze anos, entre 1851 e 1862.
Dessa experiência recolhera conclusões como esta: os costumes que por cá temos (isto é, em Portugal), os erros, os preconceitos e os abusos que imperam na chamada civilização europeia, em muito excedem, quanto a malvadez e perversidade, tudo quanto pude verificar, a esse respeito, entre aqueles povos.

E passou a descrever, com algum pormenor, o modo de ser e de agir dos seus amigos africanos. Não pintando um quadro paradisíaco, nem apontando a sociedade africana em causa como modelo a seguir pelos seus concidadãos, fazia algumas comparações que achava dignas de reflexão.




"Naqueles povoados nunca se praticou, enquanto ali estive, assassinato algum, não obstante todos os homens andarem armados e não haver polícia nem qualquer força pública encarregada de manter a ordem.

Perguntei-lhes se ali, alguma vez, um filho tinha atentado contra a vida de seu pai ou de sua mãe. Nem sequer me compreenderam. E, depois, só manifestaram espanto: naqueles espíritos inferiores, pura e simplesmente não se admitia a possibilidade de crimes tão espantosos. Não há ali nenhum exemplo, próximo ou remoto, de se ter perpetrado semelhante crime.

Entre nós, e apesar dos meios de força que se empregam para prevenir esses actos, não só os simples assassínios mas até os parricídios e outros crimes desta ordem são vulgares.

Há gente mais ou menos favorecida dos bens de fortuna, ou até relativamente pobre, mas a miséria, como se apresenta entre os povos civilizados, repugnante e degradada, é ali desconhecida.

Ali, o necessitado pede francamente, naturalmente, sem humilhação nem baixeza, o que precisa - e que não consegue obter de outro modo; aqui, na sociedade dita civilizada, engendra-se a miséria repugnante e feroz que inventa as úlceras e chega a cegar os olhos às crianças para excitar o sentimento de caridade.




A fome entre eles só é conhecida por ocasião das grandes secas, que, com as guerras, constituem as suas maiores calamidades. Entre nós morre-se de fome mesmo em tempos normais.

A mulher honra-se em ser mãe; entre nós o sentimento materno nem sempre impede que muitas mães abandonem ou matem os seus filhos.

Ali há a liberdade de costumes, que é mais inocência ou ignorância do mal do que verdadeiro vício, mas não há a prostituição asquerosa e imunda como se acha estabelecida e "organizada" entre nós.

A escória social - a que entre nós se dá o nome de canalha - também ali não existe.

Não têm hospitais nem asilos, mas também não têm prisões nem delas carecem.

São raros os roubos e os assaltos nos caminhos, não obstante estes atravessarem extensas matas solitárias; e os que se praticam são quase sempre devidos a lutas e represálias entre povos inimigos.

Entre nós, o roubo violento à mão armada pratica-se aí em qualquer estrada, dentro do país armado e policiado, e às vezes mesmo dentro de povoações importantes.
Aqui estão alguns contrastes entre a nossa civilização e aquela selvageria.




Os mais ricos e poderosos, quanto mais alto colocados, mais benévolos e atenciosos se mostram para com os menos favorecidos pela sorte.

Não têm uma religião definida, com símbolos ou quaisquer formas externas, mas acreditam na existência de Deus, ou pelo menos de um Deus, e chegaram já a um estado de consciência moral muito elevado.

A  escravidão é uma instituição legal entre eles, mas os escravos são tratados como pessoas de família. Não há ninguém que, possuindo escravos, lhes dê publicamente esse nome - mas sim o de filhos, ou sobrinhos. E, na falta de herdeiro legítimo, é adoptado como tal o escravo mais antigo.

Neste estado de civilização dito tão inferior - sem escolas, sem academias, sem sociedades literárias ou científicas, sem sistemas filosóficos, sem religião ou acreditando simplesmente em Deus, sabendo de algumas coisas apenas o que não podem ignorar, e entregues à maior liberdade - aqueles povos vivem felizes e satisfeitos, sem os requintes da civilização, é verdade, mas também sem os vícios hediondos e a profunda desmoralização que são o triste apanágio das sociedades ditas mais adiantadas." (*)

Música de Angola
(Duo Ouro Negro)


(*) - Fonte (com adaptações) - Carlos Estermann - Etnografia de Angola (Sudoeste e Centro) - Volume 1 - Edição do Instituto de Investigação Científica Tropical - Lisboa - 1983.

4 comentários:

  1. Maria não-vai-com-as-outras3 de junho de 2020 às 00:56

    Texto muito interessante sobre povos não menos interessantes, ainda que praticamente desconhecidos por cá… A música que encerra o post é belíssima, cheia de sonoridades surpreendentes e cativantes. Não consegui "reconhecer" o som do instrumento que abre a peça e que vai depois "dialogando" com o que me parece ser uma viola, mais familiar aos nossos ouvidos. Parabéns aos responsáveis por este excelente blogue.

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  2. Cara Maria: o som inicial que refere é produzido por um instrumento musical angolano, o Kisanji - ou Quissanje. Se pesquisar, com o seu motor de busca, a expressão "Kisanji Wikipedia", terá acesso a mais informações, incluindo algumas imagens do referido instrumento (que pode no entanto apresentar algumas variações de região para região). Agradecemos as amáveis palavras. Cumprimentos.

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  3. Caro anónimo Nhaneca, de Angola (9 de Julho 2023): muito obrigado pelo seu comentário. Tal como o velho sertanejo A. F. Nogueira, também eu convivi durante anos com aqueles povos (muílas, gambos, humbes, etc.). Foram tempos muito felizes. Povos simples, alegres, generosos e hospitaleiros. Guardo-os no coração e jamais os esquecerei...

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