"Ao longo da minha vida, vi vários ditadores subir e cair.
Hoje, recordo essas encarnações anteriores de uma espécie pouco estimável (...).
As circunstâncias da minha vida deram-me alguma compreensão do quadro mental dos ditadores.
Narcisismo extremo, distanciamento da realidade, uma preferência por bajuladores e uma desconfiança sobre quem diz a verdade, uma obsessão com o modo como se é retratado, um ódio a jornalistas e o temperamento de um bulldozer fora de controlo: estas são algumas das características.
O Presidente Trump é, por temperamento, um déspota de pacotilha deste género. Mas encontra-se à cabeça de um país que historicamente pensa em si mesmo como estando ao lado da liberdade.
Até ao momento, com a cumplicidade do Partido Republicano, tem governado mais ou menos sem restrições. Agora, uma eleição aproxima-se, e ele é impopular e debate-se à procura de uma estratégia vencedora. Se isso implicar atropelos às liberdades americanas, que seja.
Vivo nos Estados Unidos há 20 anos e sou cidadão desde há quatro. Uma das razões mais importantes para me tornar cidadão foi a minha admiração pelas ideias de liberdade encarnadas na Primeira Emenda da Constituição Americana.
Trump, cuja consideração pela Segunda Emenda é bem conhecida, precisa de ser lembrado da Primeira, a qual, se me é permitido ajudar, diz em parte que "o Congresso não fará nenhuma lei (...) que limite a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou o direito de as pessoas se reunirem pacificamente para pedirem ao governo uma satisfação das suas queixas".
E, no entanto, o homem cuja incompetência permitiu à pandemia apertar-nos mortalmente o pescoço, e cuja linguagem inflamatória cheia de insinuações racistas tem tido um papel significativo a lançar o preconceito supremacista branco sobre todos nós, aparece no Jardim das Rosas da Casa Branca e anuncia, sem o mais pequeno traço de vergonha, que quer proteger os manifestantes pacíficos.
Ao mesmo tempo, rua baixo, as suas forças de segurança, algumas delas a cavalo, atacam uma manifestação pacífica com gás lacrimogéneo e balas de borracha. Um instante depois, ele caracteriza os manifestantes como terroristas e caracteriza os seus protestos como crimes contra Deus.
(...) O homem que, antes de conseguir o seu emprego actual, quase nunca era visto num lugar de oração, pega então numa Bíblia à entrada de uma igreja para mostrar a sua devoção, e se o bispo da diocese logo a seguir o denuncia, acusando-o de abusar da igreja ao serviço de uma mensagem contrária aos ensinamentos de Jesus, o que importa?
Uma vez mais, ele tem as imagens, e elas falam mais alto.
Estamos tão habituados ao comportamento deste homem, tão acostumados às suas mentiras, ao seu ego inesgotável, à sua estupidez, que talvez tenhamos a tentação de pensar nisto como apenas mais um dia no "Trumpistão".
Mas desta vez algo diferente está a acontecer.
O levantamento que começou com o assassínio de George Floyd não está a esvair-se mas a crescer. O homem na Casa Branca tem medo, e durante algum tempo até se refugia na cave e desliga as luzes.
O que há-de uma pessoa assim fazer numa altura destas?
Se o deixarem usar as acções de uma pequena minoria de criminosos e de extremistas brancos infiltrados para invalidar o protesto honroso de uma vasta maioria contra o assassínio de Floyd, a violência da polícia sobre a comunidade negra e o poder entrincheirado do racismo americano, ele estará a caminho do despotismo.
Já ameaçou usar o exército contra cidadãos americanos, uma ameaça que se esperaria de um líder da antiga União Soviética, mas não dos Estados Unidos".
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Extracto de um artigo de Salman Rushdie originalmente publicado no The Washington Post em 3 de Junho de 2020.
Republicado em 13-Junho-2020 na edição n.º 2485 da Revista E, do Jornal Expresso (Lisboa - Portugal), com o título: Já Vi Ditadores Subirem e Caírem. Cuidado, América.
Tradução de Luís M. Faria.
Tradução de Luís M. Faria.
Ilustrações e sublinhados da responsabilidade da Torre da História Ibérica.
"E a bandeira estrelada em triunfo tremulará
Sobre a terra dos livres e o lar dos bravos!"
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