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"(...) Em 1418, ao regressar da segunda viagem a Ceuta, D. Henrique era um homem de vinte e quatro anos, na plenitude da força que nos temperamentos espontaneamente activos desabrocha mais têmpora.
Alto e corpulento, de largos e fortes membros, com a pele tostada pelos sóis e ventanias, os cabelos negros, espessos, rijos e empinados, um bigode farto, negro também e hirsuto, este infante não era belo: pelo contrário.
Alto e corpulento, de largos e fortes membros, com a pele tostada pelos sóis e ventanias, os cabelos negros, espessos, rijos e empinados, um bigode farto, negro também e hirsuto, este infante não era belo: pelo contrário.
Faltava-lhe na fisionomia o encanto da bondade, sem o qual não há formosura.
A dureza do seu olhar era antipática.
Descendia directamente do pai, no qual se vira um exemplar acabado do temperamento enérgico e tenaz, sem poesia, que sabe aliar a violência à astúcia quando o propósito formado o reclama para atingir um fim: do puro temperamento português, ou beirão, com traços de energia taurina.
A vontade manda exclusivamente em homens pouco dados à contemplação.
Formado um plano, delineada uma vida, todas as energias animais são escravizadas, e o homem torna-se o instrumento do próprio desígnio.
Talvez por se achar retratado nele, D. João I dava a este filho uma estima tão preferente.
Faltava-lhe de todo, como ao seu irmão Afonso, o bastardo de Barcelos, aquela veia de sentimento germânico, legada por D. Filipa ao carácter dos outros infantes, aquele indefinido misticismo humano, que só em alemão tem palavra capaz de inteiramente o definir: o gemuth, misto de sentimentalidade afectiva, de emoção melancólica, de serenidade de ânimo contemplativa, de humorismo transcendente, em combinações infinitamente variáveis, e que, desabrochando, produziu os tipos mais sublimes e também os mais extravagantes da imaginação poética, num Shakespeare, num Goethe, num Heine.
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D. Henrique era um peninsular "espanhol", afirmativo, duro, terminante, prático em tudo: na acção enérgica, no misticismo ardente, na habilidade astuta.
Para levar por diante os seus planos, primeiro sacrificou à intriga, e depois chegou a ser cruel; e para não mentir aos seus votos, entendendo a religião ao pé da letra, ficou virgem toda a vida.
Talvez daí provenha também a desumanidade que se lhe encontra no retrato.
As simpatias e a grandeza dos homens, como foi o infante D. Henrique, não está propriamente, pois, no carácter ou na individualidade: está na empresa a que se devotaram.
E como o plano do infante era verdadeiro e fecundo; como a sua ideia de um Portugal novo, destacando-se da Espanha e estendendo-se, pelos confins de Marrocos, África fora, até limites indeterminados nas regiões desconhecidas do mundo, provou afinal ser uma realidade, devemos-lhe, nós portugueses, uma segunda pátria; e deve-lhe a civilização europeia uma das suas três ou quatro conquistas fundamentais.
É isto o que faz dele um herói, na mais nobre acepção da palavra, apesar das sombras que por vezes lhe escurecem a vida, e de não se lhe encontrar beleza nem o encanto humano que distinguem outros filhos de D. João I.
Casto e abstémio, soldado e sacerdote dessa religião que despontava nas alvoradas da Renascença, abraçada ainda às velhas crenças do cristianismo medieval, a dureza ingénita do carácter do infante encontrava nas visões do seu plano um objecto e uma sanção tão profunda, que a sua alma, realistamente mística à espanhola, tinha alucinações, julgando proceder por mandados da divindade.
Esta fé e esta inclinação de génio, que se chamam loucura, quando chegam à mania e têm como objecto um fim sem utilidade real ou reconhecida, deviam concorrer para acentuar ainda mais o carácter reservado e agreste do infante.
À primeira vista, o seu aspecto era temeroso, segundo dizem os que o trataram, e, arrebatado em sanha, o semblante tornava-se-lhe muito esquivo.
Nenhum homem, perseguido e dominado por uma ideia, tem meiguice, nem aquela impassibilidade íntima que mais ou menos corresponde sempre à morte da energia, pela contemplação ou pelo cepticismo.
O Infante D. Henrique (M. Gustavo)
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Mas o infante não era expansivamente colérico, não tinha acessos, nem fúrias: era, pelo contrário, esquivo, isto é, reservado.
Amodorrava, franzia a testa, empinava as sobrancelhas, e com a palavra mansa e o gesto comedido, mandava passear quem o desgostava: Dou-vos a Deus, sejais de boa ventura!
Nunca foi avaro, e compreende-se, porque a sua paixão tinha objecto diverso.
A riqueza era-lhe apenas um instrumento ao serviço da sua ideia.
Avarento é o homem que, fazendo-se centro do mundo, refere tudo a si; e o infante via as coisas de um modo diametralmente oposto.
O centro, o núcleo, o âmago de tudo, estava neste plano a que se votaria a si próprio, sacrificando os seus, para exaltação da sua fé e da sua terra, para que germinasse, para que nascesse, florisse e frutificasse a semente que trazia no pensamento, envolvida nas dobras da inconsciência.
Nunca o infante sonhou os cruéis resultados que à sua terra haviam de vir do glorioso sacrifício a que a votava, impondo-lhe a missão de descobrir o mundo, para que a humanidade tivesse, depois das ilusões inebriantes, os desenganos finais, e na garganta o travo amargo dos frutos paradisíacos da arvore da ciência. (...)" (*)
(*) - Oliveira Martins (1845-1894) - Os Filhos de D. João I - Lisboa - Imprensa Nacional (segundo a edição de 1891)
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