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“(…) Eu nasci numa tarde de sexta-feira de Paixão; e a mamã morreu, ao estalarem, na manhã alegre, os foguetes da Aleluia. Jaz, coberta de goivos, no cemitério de Viana, numa rua junto ao muro, húmida da sombra dos chorões, onde ela gostava de ir passear nas tardes de Verão, vestida de branco, com a sua cadelinha felpuda que se chamava Traviata.
Eu cresci, tive o sarampo; o papá engordava; e o seu violão dormia, esquecido ao canto da sala, dentro de um saco de baeta verde. Num Julho de grande calor, a minha criada Gervásia vestiu-me o fato pesado de veludilho preto; o papá pôs um fumo no chapéu de palha; era o luto do Comendador G. Godinho, a quem o papá muitas vezes chamava, por entre dentes, "malandro".
Depois, numa noite de Entrudo, o papá morreu de repente, com uma apoplexia, ao descer a escadaria de pedra da nossa casa, mascarado de urso, para ir ao baile das Senhoras Macedos.
Eu fazia então sete anos; e lembro-me de ter visto, ao outro dia, no nosso pátio, uma senhora alta e gorda, com uma mantilha rica de renda negra, a soluçar diante das manchas de sangue do papá, que ninguém lavara, e já tinham secado nas lajes. À porta uma velha esperava, rezando, encolhida no seu mantéu de baetilha.
As janelas da frente da casa foram fechadas; no corredor escuro, sobre um banco, um candeeiro de latão ficou dando a sua luzinha de capela, fumarenta e mortal. Ventava e chovia. Pela vidraça da cozinha, enquanto a Mariana, choramingando, abanava o fogareiro, eu vi passar, no Largo da Senhora da Agonia, o homem que trazia às costas o caixão do papá. No alto frio do monte a capelinha da Senhora, com a sua cruz negra, parecia mais triste ainda, branca e nua entre os pinheiros, quase a sumir-se na névoa; e adiante, onde estão as rochas, gemia e rolava, sem descontinuar, um grande mar de Inverno. (…)
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Passados dias, acordaram-me, numa madrugada em que a janela do meu quarto, batida do sol, resplandecia prodigiosamente como um prenúncio de coisa santa. Ao lado da cama, um sujeito, risonho e gordo, fazia-me cócegas nos pés com ternura e chamava-me brejeirote.
A Gervásia disse-me que era o Senhor Matias, que me ia levar para muito longe, para casa da tia Patrocínio; e o Senhor Matias, com a sua pitada suspensa, olhava espantado para as meias rotas que me calçara a Gervásia. Embrulharam-me no xaile-manta cinzento do papá; o João, guarda da alfândega, trouxe-me ao colo até à porta da rua, onde estava uma liteira com cortinas de oleado.
Começamos então a caminhar por compridas estradas. Mesmo adormecido, eu sentia as lentas campainhas dos machos; e o Senhor Matias, defronte de mim, fazia-me de vez em quando uma festinha na cara, e dizia: Ora cá vamos.
Uma tarde, ao escurecer, parámos de repente num sítio ermo, onde havia um lamaçal; o liteireiro, furioso, praguejava, sacudindo o archote aceso. Em redor, dolente e negro, rumorejava um pinheiral. O Senhor Matias, enfiado, tirou o relógio da algibeira e escondeu-o no cano da bota.
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Uma noite, atravessámos uma cidade, onde os candeeiros da rua tinham uma luz jovial, rara e brilhante como eu nunca vira, da forma de uma tulipa aberta.
Na estalagem em que apeámos, o criado, chamado Gonçalves, conhecia o Senhor Matias; e depois de nos trazer os bifes, ficou familiarmente encostado à mesa, de guardanapo ao ombro, contando coisas do senhor barão, e da inglesa do senhor barão.
Quando recolhíamos ao quarto, alumiados pelo Gonçalves, passou por nós, bruscamente, no corredor, uma senhora, grande e branca, com um rumor forte de sedas claras, espalhando um aroma de almíscar.
Era a inglesa do senhor barão.
No meu leito de ferro, desperto pelo barulho das seges, eu pensava nela, rezando Ave-Marias.
Nunca roçara corpo tão belo, de um perfume tão penetrante; ela era cheia de graça, o Senhor estava com ela, e passava, bendita entre as mulheres, com um rumor de sedas claras...
Depois, partimos num grande coche, que tinha as armas do rei e rolava a direito por uma estrada lisa, ao trote forte e pesado de quatro cavalos gordos. O Senhor Matias, de chinelas nos pés e tomando a sua pitada, dizia-me, aqui e além, o nome de uma povoação aninhada em torno de uma velha igreja, na frescura de um vale. (…)
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Enfim, num domingo de manhã, estando a chuviscar, chegámos a um casarão, num largo cheio de lama.
O Senhor Matias disse-me que era Lisboa; e, abafando-me no meu xaile-manta, sentou-me num banco, ao fundo de uma sala húmida, onde havia bagagens e grandes balanças de ferro.
Um sino lento tocava à missa; diante da porta passou uma companhia de soldados, com as armas sob as capas de oleado.
Um homem carregou os nossos baús, entrámos numa sege, eu adormeci sobre o ombro do Senhor Matias. Quando ele me pôs no chão, estávamos num pátio triste, lajeado de pedrinha miúda, com assentos pintados de preto; e na escada uma moça gorda cochichava com um homem de opa escarlate, que trazia ao colo o mealheiro das almas.
Numa sala forrada de papel escuro, encontramos uma senhora muito alta, muito seca, vestida de preto, com um grilhão de ouro no peito; um lenço roxo, amarrado no queixo, caía-lhe num bioco lúgubre sobre a testa; e no fundo dessa sombra, negrejavam dois óculos defumados. Por trás dela, na parede, uma imagem de Nossa Senhora das Dores olhava para mim, com o peito trespassado de espadas.
- Esta é a Titi - disse-me o Senhor Matias. - É necessário gostar muito da Titi... É necessário dizer sempre que sim à Titi!
Lentamente, a custo, ela baixou o carão chupado e esverdinhado. Eu senti um beijo vago, de uma frialdade de pedra; e logo a Titi recuou, enojada.
- Credo, Vicência! Que horror! Acho que lhe puseram azeite no cabelo!
Assustado, com o beicinho já a tremer, ergui os olhos para ela, murmurei:
- Sim, Titi.
Então o Senhor Matias gabou o meu génio, o meu propósito na liteira, a limpeza com que eu comia a minha sopa à mesa das estalagens.
- Está bem - rosnou a Titi secamente. - Era o que faltava, portar-se mal, sabendo o que eu faço por ele... Vá, Vicência, leve-o lá para dentro... lave-lhe essa ramela; veja se ele sabe fazer o sinal da cruz...
O Senhor Matias deu-me dois beijos repenicados. A Vicência levou-me para a cozinha.
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À noite vestiram-me o meu fato de veludilho; e a Vicência, séria, de avental lavado, trouxe-me pela mão a uma sala em que pendiam cortinas de damasco escarlate, e os pés das mesas eram dourados como as colunas de um altar.
A Titi estava sentada no meio do canapé, vestida de seda preta, toucada de rendas pretas, com os dedos resplandecentes de anéis. Ao lado, em cadeiras também douradas, conversavam dois eclesiásticos. Um, risonho e nédio, de cabelinho encaracolado e já branco, abriu os braços para mim, paternalmente. O outro, moreno e triste, rosnou só "boas noites". E da mesa, onde folheava um grande livro de estampas, um homenzinho, de cara rapada e colarinhos enormes, cumprimentou, atarantado, deixando escorregar a luneta do nariz.
Cada um deles vagarosamente me deu um beijo. O padre triste perguntou-me o meu nome, que eu pronunciava “Tedrico”.
O outro, amorável, mostrando os dentes frescos, aconselhou-me que separasse as sílabas e dissesse Te-o-do-ri-co.
Depois acharam-me parecido com a mamã, nos olhos. A Titi suspirou, deu louvores a Nosso Senhor de que eu não tinha nada do Raposo. E o sujeito de grandes colarinhos fechou o livro, fechou a luneta, e timidamente quis saber se eu trazia saudades de Viana. Eu murmurei, atordoado:
- Sim, Titi.
Então o padre mais idoso e nédio chegou-me para os joelhos, recomendou-me que fosse temente a Deus, quietinho em casa, sempre obediente à Titi...
- O Teodorico não tem ninguém senão a Titi... É necessário dizer sempre que sim à Titi...
Eu repeti, encolhido:
- Sim, Titi.
A Titi, severamente, mandou-me tirar o dedo da boca. Depois disse-me que voltasse para a cozinha, para a Vicência, sempre a seguir pelo corredor...
- E quando passar pelo oratório, onde está a luz e a cortina verde, ajoelhe, faça o seu sinalzinho da cruz...
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Não fiz o sinal da cruz.
Mas entreabri a cortina; e o oratório da Titi deslumbrou-me, prodigiosamente.
Era todo revestido de seda roxa, com painéis enternecedores em caixilhos floridos, contando os trabalhos do Senhor; as rendas da toalha do altar roçavam o chão atapetado; os santos de marfim e de madeira, com auréolas lustrosas, viviam num bosque de violetas e de camélias vermelhas.
A luz das velas de cera fazia brilhar duas salvas nobres de prata, encostadas à parede, em repouso, como broquéis de santidade; e erguido na sua cruz de pau-preto, sob um dossel, Nosso Senhor Jesus Cristo era todo de ouro, e reluzia.
Cheguei-me devagar até junto da almofada de veludo verde, pousada diante do altar, cavada pelos piedosos joelhos da Titi.
Ergui para Jesus crucificado os meus lindos olhos negros. E fiquei pensando que no céu os anjos, os santos, Nossa Senhora e o Pai de todos, deviam ser assim, de ouro, cravejados talvez de pedras; o seu brilho formava a luz do dia; e as estrelas eram os pontos mais vivos do metal precioso, transparecendo através dos véus negros, em que os embrulhava à noite, para dormirem, o carinho beato dos homens.
Depois do chá, a Vicência foi-me deitar numa alcovinha pegada ao seu quarto. Fez-me ajoelhar em camisa, juntou-me as mãos, e ergueu-me a face para o céu. E ditou os Padre-Nossos que me cumpria rezar pela saúde da Titi, pelo repouso da mamã, e por alma de um comendador que fora muito bom, muito santo e muito rico e que se chamava Godinho.
Apenas completei nove anos, a Titi mandou-me fazer camisas, um fato de pano preto, e colocou-me, como interno, no colégio dos Isidoros, então em Santa Isabel. (…)."
Eça de Queiroz - Portugal (1845-1900)
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