quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

"Green Book" - O excelente e muito recomendável filme que é uma lição de vida...



Green Book, filme norte-americano realizado em 2018 por Peter Farrelly, baseia-se na história verídica de um improvável convívio - o de um famoso pianista clássico, o negro Donald Walbridge Shirley (interpretado por Mahershala Ali), com o seu motorista e segurança Frank Anthony Vallelonga, um branco de ascendência italiana (Viggo Mortensen).

Os dois actores alcançam desempenhos fabulosos nas quase duas horas de película, conferindo credibilidade absoluta às suas personagens. Sem surpresa, saíram ambos premiadíssimos, tal como o filme, desta aventura cinematográfica. Mortensen, em particular, terá atingido aqui o pico da sua já longa carreira: não obstante a aparência vagamente "nórdica" que herdou do pai, um dinamarquês, ele é irrepreensivelmente convincente no papel do italo-americano a que lhe coube dar vida.

Quanto a Mahershala, sóbrio, seguro e competente, consegue uma incrível "ressurreição" do célebre Don Shirley, num trabalho de excelência que lhe valeu o Óscar de Melhor Actor (Green Book foi contemplado com o de Melhor Filme).

  


O título do filme inspira-se num livrinho à época indispensável a qualquer negro que se deslocasse pelo Sul dos Estados Unidos - aquele Sul profundo da intolerância e da segregação racial onde o poder federal tinha por vezes que intervir, com tropas e de armas na mão, para que alunos de pele mais escura pudessem frequentar certos estabelecimentos de ensino.

O livro (The Negro Motorist Green-Book, de que se vê acima a capa da edição de 1940) foi lançado em 1936 por Victor Hugo Green, um funcionário público. Continha a lista de lugares e serviços a que um afro-americano poderia ter acesso sem receio de ser discriminado ou hostilizado (hotéis, restaurantes, lojas, oficinas mecânicas, garagens, postos de abastecimento de combustível, barbeiros, etc.).

Foi amplamente distribuído e utilizado, pela população a que se destinava, no período compreendido entre 1936 e 1966.




A acção de Green Book decorre em 1962, nos Estados Unidos (estava John Kennedy na Casa Branca). Tudo começa quando Don Shirley se prepara para uma digressão artística que o levará, exactamente, àquele Sul de que falámos. Contrata, então, Frank Vallelonga - momentaneamente desempregado - como seu motorista e, atendendo aos riscos de uma viagem como aquela, também como seu segurança. É claro que Frank Vallelonga recebe, logo à saída de New York, o guia Green Book, que o orientará acerca dos lugares em que poderá entrar com o seu novo patrão.

O filme desdobra-se em vários planos narrativos que se vão sobrepondo e interligando de forma coerente e apelativa. Torna-se desde o início patente a enorme distância que separa Shirley de Vallelonga quanto a estilo e cultura.

O músico, homem de educação refinada e intelectualmente sofisticado, usa linguagem polida e tem modos distintos. Pinta, fala oito idiomas e, para além dos estudos musicais, possui um doutoramento em Psicologia (frequentou a Universidade Católica da América, em Washington, e a Universidade de Chicago).

Por isso, todos o tratam por Dr. Shirley. Quanto à sua valia artística, a crítica é unânime. O compositor russo Igor Stravinsky, rendido ao seu talento, comentou: o seu virtuosismo é digno dos deuses. 

Frank Vallelonga é o típico fura-vidas do Bronx, palavroso (chamam-lhe "Tony Lip"), descuidado nas conversas, praticante de calão e mestre em persuadir interlocutores renitentes, para o que recorre com frequência a expedientes nem sempre recomendáveis. Culturalmente, a diferença é abissal, o que conduz por vezes a situações hilariantes (um dia põe-se a discorrer sobre um tal Joe Pan, depois de ter ouvido ao patrão uma referência a Chopin)...




Uma das linhas mestras do filme é a subtil captação da mudança no relacionamento entre as duas personagens. Ao princípio não passa de uma ligação distanciada, algo tensa e nem sempre muito confiante, de patrão-empregado. Mas vai evoluindo gradualmente até um patamar de mútua e progressiva compreensão, que o tempo se encarregará de transformar em genuína amizade.

Frank Vallelonga oferece a Don Shirley a protecção física de que este precisa (como no dia em que o músico entra inadvertidamente num bar para brancos e é hostilizado; ou noutra ocasião, quando saem de um bar para negros e são alvo de uma tentativa de assalto por parte de dois frequentadores do mesmo).

Mas Frank não se fica pelo papel de guarda-costas. Em momentos de fugaz distensão, ele ensina o patrão a desfrutar dos pequenos e descomprometidos prazeres da vida, como na altura em que, em plena viagem, o convence a comer frango frito (que ele julgava detestar), com as mãos (hábito até então tido por Don como impróprio de gente civilizada).

Em contrapartida, Shirley dá a Frank lições de dicção e de bons modos e culmina auxiliando-o a escrever as cartas que ele vai enviando à esposa, Dolores. Esta passa a receber, para seu enlevo - e efusivo entusiasmo das amigas a quem as dá a conhecer -, missivas elaboradas e ternamente românticas, sem erros de ortografia e com incursões afectivas até então desconhecidas (a correspondência anterior quase se reduzia a uma espécie de relatórios sobre as refeições - pantagruélicas - de Frank, as suas lavagens de roupa nos albergues e a sucinta manifestação das saudades que ele ia tendo dela e das crianças).

É no fecho de uma dessas cartas ditadas por Shirley que ocorre outro momento divertido. Frank pergunta ao músico se pode acrescentar um pós-escrito. Shirley, que se esmerou na feitura daquela epístola amorosa, responde, de cara fechada: Um pós-escrito? Seria como tocar um badalo no fim da 7.ª Sinfonia de Shostakovich… Frank, que não apreendeu a ironia do comentário, conclui: Ah, então quer dizer que fica bem! E adiciona laboriosamente o seu pós-escrito para Dolores...





O pano de fundo da história é o Sul - o Sul profundo -, onde Don Shirley é recebido, em casas senhoriais ou nas salas de espectáculos, por plateias exclusivamente brancas que não lhe regateiam aplausos nem palavras de admiração. É uma das faces do Sul, amena e estimável.

A outra face revela, nos mesmos locais e com as mesmas pessoas, o esgar hediondo de um racismo antiquíssimo, doentiamente entranhado, cheio de contradições na sua visceral e absurda desumanidade. Como naquela mansão magnífica de um homem abastado do Mississippi, em que Shirley é festivamente acolhido como o génio que, de facto, é, mas onde lhe negam o acesso à casa de banho dos anfitriões.

Ou, ainda, no Concerto de Natal do hotel de uma cidadezinha do Alabama, em que centenas de pessoas pagaram para o ver e ouvir e o receberam como a grande "estrela" da noite, mas onde se vê impedido de jantar com os seus admiradores porque a sala do restaurante era reservada a brancos...


Frank Vallelonga testemunha estes incidentes e indigna-se com eles, reagindo-lhes com a violência e a linguagem castiça que lhe é peculiar. Começa a entender o drama do seu patrão - que, em diversas escalas, se reproduz em milhões de seres humanos. Envergonha-se com o procedimento da gente da sua cor, e a sua solidariedade para com Don evolui para um sólido princípio de amizade. Sobretudo quando lhe é dado saber, por experiência própria, que as fronteiras do preconceito possuem linhas muito ténues e que o mesmo pode estender-se a alvos inesperados...



Ainda no Mississippi, a horas tardias de uma noite chuvosa, são parados na estrada por dois agentes da polícia, que não compreendem como pode um branco servir de motorista a um negro. Frank explica, com lógica e simplicidade: Ele é o meu boss, ou seja, é o homem que lhe paga para que ele possa pôr pão na mesa da família.

Intrigado com o seu apelido - Vallelonga -, o guarda pergunta-lhe que nome é aquele. Frank responde que é de ascendência italiana. O semblante do guarda ilumina-se, porque, finalmente, julga ter compreendido: Ah, pois, você também é meio-negro.


Provavelmente, o polícia teria dito o mesmo a um grego, a um português ou a um espanhol. Ali, não pôde dizer mais nada, porque Frank o derrubou impulsivamente com um murro. A cena terminou com os dois, patrão e empregado, presos na esquadra da cidade - Frank pela agressão ao polícia, Shirley por ter violado a lei do recolher obrigatório: naquelas paragens, era proibido aos negros andarem na via pública depois do pôr-do-sol.

Só a intervenção de Robert Kennedy, Procurador-Geral dos Estados Unidos e irmão do Presidente (conhecido de Don Shirley), conseguiu que eles fossem libertados nessa mesma noite.

Quando retornaram a New York, na noite de Natal, Frank Vallelonga era um homem diferente - e, provavelmente, Don Shirley também o era, envolvendo-se na luta pelos direitos civis dos negros e aproximando-se de Martin Luther King.

Apesar de já não serem patrão e empregado, os dois mantiveram a ligação e ficaram amigos para o resto das suas vidas. Morreram, em datas próximas, no ano de 2013: Frank em 4 de Janeiro, com 82 anos; e Shirley em 6 de Abril, com 86.





Oiça 3 peças da banda sonora de Green Book:


1 - Go to the Mardi Gras
(Execução: Professor Longhair)


2 - The Lonesome Road
(Execução: Don Shirley)


3 - Rich Woman
(Execução: Li'l Millet and His Creoles)

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