sábado, 14 de dezembro de 2019

A BELA E O MONSTRO: Chimamanda Ngozi Adichie fala sobre Donald Trump...

Chimamanda Ngozi Adichie


"Nos Estados Unidos da América percebi como, só por ser negra, a minha inteligência era questionada"

Chimamanda Ngozi Adichie, que nasceu em Enugu, Nigéria, no ano de 1977, é uma famosa romancista, ensaísta e conferencista, muito justamente incluída no grupo das mais importantes escritoras anglófonas.
Excelente aluna desde criança, na Nigéria, viajou para os Estados Unidos, aos 19 anos, a fim de estudar Comunicação e Ciências Políticas na Universidade Drexel, em Filadélfia.
Em 2003 completou o mestrado em Escrita Criativa na Universidade John Hopkins, em Baltimore. Em 2008 recebeu o certificado como Mestre em Estudos Africanos (Universidade de Yale).

Publicou, aos 26 anos, o seu primeiro romance, A Cor do Hibisco, contemplado em 2005 com o Prémio para Melhor Primeiro Livro da Commonwealth Writers.
Em 2006 surgiu o livro Meio Sol Amarelo, que venceu no ano seguinte o Orange Prize para Ficção.
Em 2013 publicou Americanah, a obra que a projectou a nível mundial.
No domínio do ensaio, salientam-se Querida Ijeawele - Como Educar para o Feminismo e, ainda, Todos Devemos ser Feministas.
Numa passagem recente por Portugal, concedeu uma entrevista onde, a dado passo, expressou a sua opinião sobre a  inenarrável criatura de Washington.
É disso que se dá conta mais abaixo.




Pergunta - Foi para os Estados Unidos da América com 19 anos. Desde então conviveu com três presidentes. Quão difícil é viver nuns EUA sob tutela de alguém como Donald Trump?

Resposta - É terrível. Sabe o que é? É surreal. George W. Bush não era um Presidente popular. Eu não voto nos EUA, porque continuo a manter a cidadania nigeriana por escolha, mas, se votasse, votava democrata. Muitos dos meus amigos são de esquerda e muitos deles não gostavam de George W. Bush, porque não o achavam preparado. Não era suficientemente inteligente para ser Presidente. As pessoas ficaram furiosas com a sua mentira sobre as armas de destruição massiva, com a questão do Iraque.

Só que Trump é algo de completamente diferente. Embora as pessoas não gostassem de Bush e desconfiassem dele, não pensavam que os fundamentos dos EUA estivessem em causa. Não sentiam que as instituições americanas estivessem em causa.
Agora, com Trump, sentimos que muitas coisas que pensávamos serem sólidas afinal não o são. É como se Trump tivesse desmistificado a América. Há uma mística da América, que também vem do seu poder cultural. Vemos todos aqueles filmes sobre a América, sempre apresentada como poderosa e boa. Há aquele sentido de que a América é o tipo bom. Mesmo quando conheces a política externa dos EUA, tendes a pensar que a América é o bom da fita.


Pergunta - Trump alterou essa narrativa?

Resposta - Trump virou isso completamente de pernas para o ar. Agora percebo que é possível ao Governo americano apoiar alguém que é responsável pela morte e afastamento de um jornalista que é residente nos EUA. Desculpe, mas isto é o tipo de coisas que não consigo superar. Não consigo superar que um homem que tem a Carta Verde, paga impostos nos EUA, não só é morto como é descartado. E percebemos que o seu Governo tem o petróleo e o dinheiro necessário.

Talvez eu esteja a ver agora a América de que muitos dos meus amigos mais radicais me falavam. Temos um Presidente que não tem nenhum senso, nenhuma visão, que não acredita em nada. Nada disto é normal.
Às vezes, preocupa-me verificar que a imprensa nos EUA usa os mesmos padrões para com Trump que usava para com George W. Bush ou Obama, mas é preciso perceber que temos no poder uma pessoa instável. É algo de completamente diferente.

Quando ele chegou ao poder, eu e muitas outras pessoas ficámos chocadas. Depressa fiquei muito preocupada ao ver a cobertura feita pela imprensa. Ele mente. Mas é o Presidente dos EUA, e pelo livro de estilo do jornalismo norte-americano, vindo da Columbia School of Journalism, ou o que seja, os presidentes não mentem, ou pelo menos daquela maneira. Ninguém sabe o que fazer. Ele mente, queixam-se, mas dizem que não há provas para o demonstrar. Mas que raio? 



Pergunta - Donald Trump torna o mundo mais perigoso?

Resposta - Há duas coisas que me deixam verdadeiramente triste e desconfortável. Não é só o facto de este homem instável ser o mais poderoso do mundo, com todas as consequências que isso pode ter para o mundo, e para sentir essas consequências nem é preciso ser americano.
Mas é também o facto de a sua própria gente não saber como lidar com ele. Todo o mundo sabe que está a lidar com alguém completamente instável. Isto é como ter um rei louco.
Tudo isto faz-me pensar em quanto poder tem um Presidente dos EUA, apesar de ostensivamente dever haver um sistema em que os três braços do poder se controlam uns aos outros.

Mas não é assim. Porque um homem assim instável pode acordar um dia de manhã e decidir que quer entrar em guerra com a Coreia do Norte. Isso está a acontecer. A China é má, mas no dia seguinte a China já é boa. A Coreia do Norte é terrível, mas no dia seguinte está a dizer o contrário, ou então está a dizer para irem almoçar e estarem preparados para atacar o Irão. Umas horas depois estará a dizer: "Não, não, não façam isso".
Não percebo como é que se pode ter tanto poder sem que algo de potencialmente horrível aconteça. Isso assusta-me muito.
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Entrevista conduzida por Valdemar Cruz e publicada na Revista E, do jornal Expresso (Lisboa, Portugal) - Edição n.º 2455, de 16-Novembro-2019, pág. E/61.

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