"Aos
poucos, as fotografias tornam-se ilegíveis.
Quem
vai identificar estas pessoas, quem se lembrará delas?
Já
não reconheço muitos dos que encontro nas molduras ou nos álbuns de família. Ou
então conheço-os de uma única imagem, a que está à vista.
Alguns
deles pertenceram durante décadas a uma pequena categoria, “os mortos”; mas
agora já há muitos mortos, só há pouco tempo me apercebi de que eram tantos. I
had not thought death had undone so many (*), escreveu o Eliot.
De
alguns familiares ainda vivos quando nasci, não guardei memória alguma ou tenho
uma memória vaguíssima (o meu avô paterno, um tio materno com quem estou numa
fotografia de que gosto muito); mas de entre aqueles de quem me lembro, que
devastação.
Aos
poucos, e depois de repente, as minhas recordações antigas são recordações de
gente que morreu. Os meus avós. A minha madrinha, irmã do meu avô. A meia-irmã
da minha avó. O meu tio (…).
Lembro-me
de salas de estar e de jantar cheias destas pessoas, umas no quotidiano, outras
nas férias, nas festas, gente das fotografias que conheci muito bem, ou não tão
bem, de quem guardo histórias, gestos, expressões, memórias que não ficam,
desaparecem eles e elas, depois as histórias, depois aqueles que deles e delas
se lembravam.
Porque
com o tempo acaba-se a distância de segurança, a ideia tranquilizadora e
intolerável de que morrerão duas gerações antes de morrer a nossa.
Do
tempo dos avós, já não temos ninguém. Da geração dos pais estão vivas sete
pessoas (sete ao todo, dos dois lados, como é possível?). Mas também perdemos
três dos meus primos rapazes, pouco mais velhos do que eu. E sabemos que não
sabemos o dia nem a hora.
A
morte dos outros é mais difícil do que a nossa, porque vivemos a morte deles e
não viveremos a nossa. E porque a morte dos outros significa o desmantelamento
do nosso passado, a inexistência do nosso passado, do qual deixa de haver prova
indiscutível.
Ficam
imagens, objectos, detritos, coisas em gavetas que nada dirão aos vindouros. E
os nossos mortos fazem-se não apenas pó, mas nevoeiro, figuras extintas,
indistintas, irrecuperáveis.
Enquanto
isso, talvez por isso, mantemos vivos os vivos, como numa fotografia deste
verão que os meus primos me mandaram: as quatro irmãs, uma das quais minha mãe,
na casa dos meus avós. A fotografia garante a veracidade da nossa vida através
da veracidade da vida delas. É o contrário das fotografias dos mortos, não
apenas por estarem as quatro vivas, mas porque, estando vivas, tornam mais
sólido e mais imaginariamente eterno o nosso mundo, as nossas memórias, a
comunidade que faz de nós irmãos e primos.
Nenhum
fotografado sobrevive: nem as pessoas desta fotografia nem nós que a enviámos
uns aos outros com uma alegria feroz e assustada; mas é a família que nos faz,
mesmo quando nos desfaz. Somos feitos à imagem desta imagem fugaz." (**)
…………………...
(*) Eu não tinha pensado que a morte extinguira tantos.
(**) “À Imagem” – Crónica de Pedro Mexia na E – Revista do jornal Expresso – Edição
2445 – 7-Setembro-2019 – pág. 106 - Lisboa
– Portugal.
(Ilustrações
da responsabilidade da Torre da História Ibérica)
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