“A menina
solteira! Vejamos o tipo geral de Lisboa. É um ser magrito, pálido, metido
dentro de um vestido de grande puff, com um penteado laborioso e espesso, e
movendo os passinhos numa tal fadiga, que mal se compreende como poderá jamais
chegar ao alto do Chiado e da vida.
O primeiro sinal
saliente é a anemia.
Taine diz – pintando o sólido vigor inglês – que o dever
essencial de uma menina é ter saúde. Uma pele fresca e lisa, músculos que jogam
livremente, busto direito, beiços vermelhos – indicam juízo forte, consciência
recta, um sentir puro. A palidez, as olheiras, o peito deprimido, o ar murcho –
revelam um ser devastado por apetites e sensibilidades mórbidas.
Ora, entre
nós, as raparigas não têm saúde. Magrinhas, enfezadas, sem sangue, sem carne,
sem força vital – umas padecem de nervos, outras de estômago, outras do peito,
e todas da clorose que ataca os seres privados do sol.
Em primeiro lugar, não respiram. Os seus dias são passados na preguiça de um sofá, com as janelas
fechadas; ou percorrendo num passinho derreado a Baixa e a sua poeira.
Portanto, falta de ar puro, são, restaurador.
O ar da Baixa corrompe o sangue;
e o ar das salas, resguardadas por cortinas ou alumiadas a gás, não tem
oxigénio e portanto não alimenta.
Depois, não
fazem exercício. Uma inglesa tem por dever moral, como a oração, o passeio – o largo
passeio, bem marchado durante duas horas, sem preocupação “janota”, todo de
higiene.
Aqui, as que andam a pé, depois de irem de uma loja na Rua do Ouro a
uma igreja no Loreto, arquejam e recolhem à pressa no ónibus. Algumas mesmo não
sabem andar; escorregam, saltitam, oscilam.
Nada dá tanta ideia da constância
de carácter como a firmeza do caminhar. Uma alemã, uma inglesa, anda como pensa
– direita e certa.
As nossas raparigas, constantemente sentadas e aninhadas,
quando têm de se pôr a pé e de marchar, gingam e rolam. Além disso, o hábito do
sofá, do recosto e da almofada, acostuma às posições lânguidas; cabeça errante,
braços amolecidos, corpo abandonado.
Uma inglesa nunca toma, por pudor, estas
atitudes. São atitudes de serralho ou de pomba amorosa. Uma menina está direita
e firme.
Depois, não
comem. É raro ver uma menina alimentar-se racionalmente de peixe, carne e
vinho. Comem doce e alface.
Jantam as sobremesas. A gulodice do açúcar, dos
bolos, das natas, é uma perpétua desnutrição.
Nas casas de província, onde a
moral existe guardada em decrépitos provérbios como em frascos, dizem os
velhos, com ingénuo horror: mulher gulosa, bicha manhosa.
Lisboa é uma
cidade doceira, como Paris é uma cidade intelectual. Paris cria a ideia e
Lisboa o pastel. Daí a grande quantidade de doenças de estômago e de maus
dentes. A deterioração pelo doce começa aos quatro anos. O sangue alimentado a
massa, ovos, natas, dá estes corpos débeis e estas almas amolecidas.
Outra causa de
doença é a toilette.
Com estes penteados enormes, eriçados, insólitos,
em forma de capacete, de fronha, de chalé, de concha, e com os materiais
tenebrosos que metem por baixo para sustentar e erguer mais a construção inclemente,
acumulam sobre a cabeça um fardo, uma trouxa, que não deixa arejar o crânio.
A
transudação acumula-se à raiz do cabelo, fecha os poros, cria um estado de
inflamação.
Ouve-se dizer quase sempre às mulheres – Sinto hoje um peso na
cabeça!...
É o fardo! É o crânio que, sem ar, amolentado, está adoecendo
como um corpo que não se despe.
Lisboa é a
cidade do Universo onde as meninas mais se espartilham. O espartilho que
destrói a beleza da linha, a melodia das curvas naturais, dificulta, ao mesmo
tempo, a circulação, a respiração e a digestão. Fere as três causas da vida.
De
modo que o balanço das condições físicas de uma rapariga portuguesa é este: músculos
sem exercício; pulmões sem ar; circulação comprimida; digestão estrangulada.
A primeira
consequência é que uma rapariga assim destrói a sua beleza, a vivaz mocidade, e
a graça.
A pele amarelece, os olhos encovam, os lábios gretam, as orelhas
despegam do crânio, o nariz afila, as mãos humedecem, todo o corpo corcova – e na
bela idade da florescência, e na fresca expansão da vida, uma pobre rapariga de quinze
ou dezoito anos está como alguma coisa de amarrotado, de melado, de murcho, de
em segunda mão, com aquele aspecto safado que o pó das estradas dá à
virgindade das folhas.
Começam a
precisar, para serem bonitas, da luz do gás. No brilho artificial daquela luz
crua, uma menina, com os cabelos lustrosos, um pouco de pó-de-arroz e muitos
tules espalhados, tem encanto e pode seduzir.
Mas que venha, ao outro dia, a
sincera luz da manhã! Todas as máculas se destacam: os cabelos, chamuscados do
ferro de frisar, estão secos e cor de rato, os beiços são como um velho bago de
romã espremida, o nariz tem, na cartilagem que o liga ao rosto, um vinco
escuro, toda a pele parece a de uma galinha cozida!...”
…………………….
Fonte: Eça de
Queiroz – Uma Campanha Alegre (de As Farpas) – vol II – Lello & Irmão-Editores
– Porto – Portugal – Ano de 1979 – Págs. 109-112.
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