terça-feira, 14 de dezembro de 2021

"Poema da Malta das Naus" (António Gedeão)






Lancei ao mar um madeiro
espetei-lhe um pau e um lençol.
Com palpite marinheiro
medi a altura do sol.

Deu-me o vento de feição,
levou-me ao cabo do mundo.
Pelote de vagabundo,
rebotalho de gibão.

 

Dormi  no dorso das vagas
pasmei na orla das praias
arreneguei, roguei pragas,
mordi peloiros e zagaias.

Chamusquei o pelo hirsuto
tive o corpo em chagas vivas,
estalaram-me as gengivas,
apodreci de escorbuto.


 

Com a mão esquerda benzi-me,
com a direita esganei.
Mil vezes no chão, bati-me,
outras mil me levantei.

Meu riso de dentes podres
ecoou nas sete partidas.
Fundei cidades e vilas,
rompi as arcas e os odres.



Tremi no escuro da selva,
alambique de suores.
Estendi na areia e na relva
mulheres de todas as cores.

Moldei as chaves do mundo
a que outros chamaram seu,
mas quem mergulhou no fundo
do sonho, esse, fui eu.

O meu sabor é diferente.
Provo-me e saibo-me a sal.
Não se nasce impunemente
nas praias de Portugal.

António Gedeão - Portugal (Lisboa, 1906-1997)

Poema cantado por
Manuel Freire:


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