Fialho de Almeida quando jovem (por Columbano Bordalo Pinheiro)
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Em Março de 1917, assinalando a passagem do 6.º aniversário da morte
do escritor português Fialho de Almeida (1857-1911), amigos e
admiradores seus produziram um conjunto de testemunhos sobre a sua vida e a sua obra e publicaram-nos em Fialho de Almeida, In Memoriam.
Homenageavam desse modo o talentoso autor de Os Gatos, Lisboa Galante, O
País das Uvas, Galiza, Aves Migradoras, etc.
Transcreve-se o contributo de Álvaro Cabral (com actualização ortográfica):
"O saudoso Fialho de Almeida, escritor de requintado estilo,
merecidamente respeitado pelos encantos das suas obras, não foi só o autor de
tanta coisa bela da literatura moderna. Não. O nosso querido amigo foi também -
sem desfazer em quem está presente — um pitoresco boémio, se não incorrigível,
pelo menos admirável.
Assim o juro pelo grau da minha vida alegre de outrora.
E, justamente por me ter cabido a subida honra de haver
confraternizado com o brilhante autor da Vida
Irónica em diversas estúrdias algo turbulentas e sacudidas de todo o recato
e de toda a pacatez, me apraz descrever in
memoriam um dos muitos episódios ratões passados com ele em altas noites,
que Deus tenha em sua santa glória.
Foi pelo Centenário da Índia, durante as festas em Lisboa.
Eram três da madrugada. Tínhamos acabado de cear no Conde de Almada, ele
– Fialho -, D. João da Câmara, Figueiredo «Pintorinhos», Óscar da Silva,
Augusto Pina, Henrique Alves, Chaby Pinheiro, Teixeira Marques, Luís Galhardo,
Manuel Penteado o este vosso muito criado e respeitador sincero.
A suculenta refeição, que constou de dobrada com vidrilhos — especialidade
da casa - pescadinhas de Sesimbra, queijinhos de Tomar, azeitonas de Elvas,
laranjas de Setúbal, bananas da Ilha, muito vinho do Cartaxo, pão de farinha de
trigo e seis quartos de marmelada de Odivelas para o Chabyzinho, que os mamou a
todos com a mesma alegria com que as criancinhas chucham os bombons de
chocolate, custou, recordo-me como se fosse ontem, a módica quantia de três mil
quatrocentos e quarenta réis da «monarquia», que foram repartidos pelos onze comensais, cabendo, ou a matemática é uma
batata, dezassete vinténs por cabeça, com sifão, gorjeta e tudo. (…)
Vasco da Gama perante o Samorim, na Índia (por Veloso Salgado) |
Mas vamos ao episódio.
Tínhamos acabado de cear, como lhes disse, e partimos, Portas de Santo
Antão acima, metemos à rua do Jardim do Regedor, tomámos a Avenida da Liberdade
e fomos até à frente do teatro. Aí parámos e sentámo-nos; uns no assento do
banco, outros nas costas e alguns no chão.
E o que imaginam os meus amigos que divertimento nos acudiu à
lembrança, para moer a dobrada com
vidrilhos, as pescadinhas marmotas,
os queijinhos de Tomar e o muito vinho do Cartaxo?
Não imaginam com certeza. Mas eu lhes digo. Preparámo-nos todos para
representar!
Mas para representar o quê – perguntarão –, naquele sítio e àquela
hora?
Nada mais nada menos do que A
chegada de Vasco da Gama à índia, reproduzindo quanto possível o célebre
quadro de Veloso Salgado exposto na sala da Sociedade de Geografia!
Arregaçámos as calças até aos joelhos a fingir calções, pusemos os
chapéus de pernas para o ar, isto é, de copa para baixo, e dispusemo-nos
heroicamente à exibição do drama histórico.
A D. João da Câmara distribuímos o papel de Samorim; aos actores, os
escravos; aos amadores, os marinheiros da nau; e a Fialho de Almeida o grande
protagonista, D. Vasco da Gama, por saber de cor as estrofes.
A mise-en-scène de Augusto
Pina, estava um primor. (…)
Já se tinha dado o terceiro sinal para subir o pano, quando subitamente
nos surge por detrás duma atarracada palmeira um vulto negro que não constava
da marcação da peça.
Demorou-se um pouco o começo do espectáculo esperando o vulto que
entrava pela cena dentro sem licença do contra-regra.
O velho Fialho de Almeida (por António Carneiro) |
Quem era o inoportuno?
Ora quem havia de ser? – o polícia de serviço!
Acercou-se do grupo, e vendo que aquela mascarada transitava sem
licença do Governo Civil, inquiriu:
— Que vem a ser isto, meus
senhores?
— Isto!, respondeu Fialho, isto! Dobre a língua…
— Isto, quer dizer, este
ajuntamento…
— Ah, agora sim! — E, com
voz de pregoeiro, declamou: A chegada de
Vasco da Gama à índia. Peça de Marcelino de Mesquita com música de Óscar da
Silva e desempenhada pelo Beijinho da Arte de Representar em Portugal.
—Ah!!!
Vai daí, perguntei eu: — O
senhor guarda não estava avisado deste ensaio geral?
— Eu não senhor!
— O quê? Não estava prevenido?
— Juro por alma de minha mãe que
não estava.
— Pois amanhã — acrescentou o
Chaby, de modo colérico — vamos ao sr.
major Dias... E você terá como castigo o enfileirar-se de novo no seu
regimento de infantaria.
— Mas, meus senhores — balbuciou
o guarda, deveras atarantado — eu não vou
contra as ordens do sr. Major. Se ele autorizou, manda quem pode. Podem começar.
O que lhes peço é licença para presidir ao espectáculo no meu lugar de
autoridade, e o favor de me apresentarem ao sr. Samorim. Pode ser?
— Ora essa, com todo o gosto
— disse-lhe o Chaby, muito satisfeito.
— Ou quer o senhor entrar na
peça? — perguntou-lhe o Teixeira Marques, arregalando risonho os seus
grandes olhos negros.
— Entrar na peça? Eu? Mas a
fazer de quê?
— De quê? De escravo — replicou
o Fialho.
— De escravo?!
— Pois que papel quer você fazer
sem ter ensaiado nada?
— Tem razão, tem razão. Pois
muito bem, vamos a isso.
— Aqui. Coloque-se aqui — ordenou
o Fialho ao guarda, metendo-lhe na mão um guarda-chuva. — Faça de conta que isto é uma umbela. Cubra-me.
O guarda abriu o chapéu.
— Pode começar? — perguntou
o Óscar.
— Pode - respondeu-se em coro.
Então o Fialho, armado em D. Vasco da Gama, desenhou-se em frente de D.
João da Câmara, que estava sentado a fazer de Samorim, mas que naquele momento
mais nos dava a impressão de um médico alienista do que dum Vice-rei, e
começou:
E se queres com pactos,
e lianças
De paz, e de amizade
sacra e nua (…)
Findas as estrofes do imortal cantor das nossas glórias, os aplausos
ecoaram por toda aquela imensidade.
O polícia atirou com a umbela ao meio do palco, caiu nos braços do
famoso intérprete e qual não foi o nosso espanto quando ele se declarou também
amador dramático e nos pediu que o ouvíssemos recitar O Escravo!
Abraçámos a ideia e Galhardo gritou:
- É para já! Rapazes, atenção.
O polícia, então, colocou o boné sobre o banco, tomou atitudes grotescas
e desatou a recitar com voz de estentor:
Tremes, escravo,
branqueias
Entre os muros da
prisão!
Mas o desventurado guarda e furioso dramático não logrou fazer-se
ouvir pela assistência, porque ainda bem não tinha acabado o segundo verso,
apareceu-lhe por detrás da mesma palmeira o cabo da ronda, que lhe disse:
— Amanhã, amanhã te darei as
grades da prisão, meu idiota. Tudo já daqui p'ra fora e . . . tableau! Pano
abaixo!
No dia seguinte fomos em comissão pedir o perdão do Escravo, e o nosso pedido foi deferido."
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