Síntese Thor Heyerdahl foi zoólogo, geógrafo e explorador. Nasceu na Noruega, em 1914, e faleceu na Itália, em 2002. O seu nome tornou-se conhecido em todo o mundo, no ano de 1947, por ter comandado, na jangada Kon-Tiki, a expedição que cruzou o Oceano Pacífico desde o Peru até à Polinésia, numa extensão de 4300 milhas marítimas (cerca de 8000 quilómetros).
Com essa viagem de 101 dias, durante a qual não recebeu qualquer apoio exterior, o norueguês deixou praticamente provado que as ilhas da Polinésia terão sido inicialmente povoadas a partir da América do Sul - e não a partir da Ásia, como até então se supusera.
Thor Heyerdahl escreveu um relato empolgante da extraordinária aventura, o qual foi traduzido em mais de 60 países e vendeu cerca de 25 milhões de exemplares.
Segue-se aqui, de muito perto, uma antiga edição portuguesa da sua obra (A Expedição da Kon-Tiki - Empresa Nacional de Publicidade, Lisboa, 1958). |
A ideia ocorrera a Thor Heyerdahl dez anos antes, durante a sua permanência em Fatu Hiva, uma das ilhotas polinésicas do arquipélago das Marquesas. Foi aí que começou a juntar indícios resultantes das suas investigações no terreno, e foi aí que, fascinado, os relacionou com as lendas que ia ouvindo ao velho Tei Tetua à volta da fogueira.
Tei Tetua era o único sobrevivente das extintas tribos da costa oriental de Fatu Hiva. Falava das remotas origens do seu povo - primitivo habitante das ilhas da Polinésia - dizendo que ele tinha sido conduzido até ali por um tal Tiki, filho do Sol, que era simultaneamente deus e chefe.
Segundo Tei Tetua, a sua gente viera de leste, dos lados da América, transportada em ligeiras embarcações que flutuavam, empurradas pelos ventos, ao sabor das correntes marítimas.
Tohr Heyerdahl principiou então a juntar as peças. Recordou que os primeiros europeus que se aventuraram no Pacífico haviam descoberto nas ilhas polinésicas uma gente alta e esbelta, de tez clara e nariz aquilino, que falava uma língua que nenhum outro povo compreendia. Alguns possuíam olhos azul-acinzentados, usavam longas barbas e a cor do cabelo variava entre o avermelhado e o louro.
Nalguns locais, os europeus depararam com antiquíssimas pirâmides, ruas calçadas e estátuas de pedra da altura de uma casa europeia de quatro andares.
Lendas alusivas a brancos misteriosos, de quem esses ilhéus descenderiam, eram correntes em toda a Polinésia. Não podiam ter vindo de oeste, onde habitavam povos primitivos de tez escura, da Austrália e da Melanésia, nem da Indonésia ou da costa asiática.
Thor Heyerdahl voltou a atenção para a costa leste mais próxima, centrando-se na região da República do Peru, terra dos Incas, onde não havia falta de vestígios. Ali vivera outrora um povo desconhecido, fundador de uma das mais estranhas civilizações do mundo.
Os homens desse povo extraíam das montanhas blocos de pedra de tamanho descomunal e transportavam-nos pelo campo, quilómetros a fio. Depois punham-nos em pé ou colocavam-nos uns por cima dos outros para formar portões, paredões e terraplenos.
Quando esse povo desapareceu subitamente da região, deixou atrás de si enormes estátuas de pedra semelhantes a seres humanos que faziam lembrar as de Pitcairn, as das ilhas Marquesas e as da ilha de Páscoa. E, também, grandes pirâmides construídas em degraus como as de Taiti e de Samoa.
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Quando os primeiros espanhóis irromperam nessa região montanhosa, incluída no império dos Incas, ouviram destes que os colossais monumentos abandonados no meio da paisagem tinham sido erigidos por uma raça de deuses brancos que ali haviam vivido antes deles.
Esses arquitectos desaparecidos eram, segundo a descrição dos Incas, homens sábios, pacatos, oriundos do Norte na aurora dos tempos. Tinham ensinado aos antepassados dos Incas a arquitectura e a agricultura, assim como os bons costumes e as boas maneiras. Não se confundiam fisicamente com os indígenas: tinham a pele branca, ostentavam longas barbas e eram também de maior estatura.
Os Incas acabaram senhores do país. Os seus mestres brancos sumiram-se para sempre da terra sul-americana, marchando para oeste e atravessando o Pacífico.
Thor Heyerdahl continuou as pesquisas. Notou que, quando Roggeween chegou à ilha de Páscoa, em 1722, avistou com surpresa "homens brancos" entre os que se achavam na praia. E essa gente referia, com aparente convicção, os seus antepassados de tez branca - recuando até ao tempo do famoso Tiki, que tinha singrado através do oceano "vindo de uma terra montanhosa a leste, requeimada pelo sol".
Heyerdahl achou surpreendentes vestígios de tudo isto na mitologia e na língua do Peru.
Lia ele, um dia, as lendas incas do Rei-Sol Virakocha, que fora chefe supremo do remoto povo branco do Peru, quando deparou com o seguinte:
"Virakocha é um nome inca (ketchua) e, por conseguinte, de data relativamente recente. O nome original do deus-sol Virakocha era Kon-Tiki, que significa Sol-Tiki ou Fogo-Tiki.
Kon-Tiki era sumo sacerdote e rei dos lendários "homens brancos", que tinham deixado as enormes ruínas nas margens do lago Titicaca.
Rezava a lenda que Kon-Tiki fora atacado por um chefe de nome Cari, que veio ao vale de Coquimbo.
Na batalha travada numa ilha do lago Titicaca, os misteriosos brancos barbados foram desbaratados. Kon-Tiki e os seus companheiros mais chegados conseguiram escapar e, mais tarde, deslocaram-se até à costa, de onde finalmente desapareceram sobre o mar para as bandas do ocidente".
Thor Heyerdahl ficou sem dúvidas de que o branco deus-chefe Sol-Tiki, expulso do Peru para o Pacífico pelos antepassados dos Incas, era o mesmo branco deus-chefe Tiki, filho do Sol, a quem os habitantes de todas as ilhas orientais do Pacífico reconheciam como primitivo fundador da sua raça.
E os pormenores da vida de Sol-Tiki no Peru, bem como os nomes de lugares em redor do lago Titicaca, repetiam-se nas lendas evocadas pelos naturais das ilhas do Pacífico.
Por toda a Polinésia, Thor Heyerdahl achou indicações de que a pacífica raça de Kon-Tiki não logrou conservar as ilhas só para si durante muito tempo.
Segundo tais indicações, barcaças de guerra, amarradas duas a duas, haviam transportado povos indígenas do nordeste até ao Hawai e, mais para sul, até às restantes ilhas.
Foi este o segundo povo a chegar à Polinésia, por volta de 1100. Ignorava a cerâmica, os metais, a roda, o tear e o cultivo de cereais.
Os guerreiros recém-chegados misturaram o seu sangue com o da raça de Kon-Tiki, originando um novo tipo de civilização nas ilhas polinésicas.
Thor Heyerdahl expondo a sua teoria no Clube dos Exploradores de Nova Iorque |
Chegou a Segunda Guerra Mundial. E veio a paz. Thor Heyerdahl elaborara entretanto, por escrito, a sua teoria sobre o primitivo povoamento das ilhas polinésicas: Polinésia e América - Estudo de suas relações pré-históricas.
Concluía basicamente que um antigo povo branco partira da América do Sul havia cerca de 1500 anos, navegando, nas embarcações então disponíveis, ao sabor das correntes marítimas e dos ventos dominantes, até atingir e povoar as ilhas da Polinésia.
Viajando até aos Estados Unidos para apresentar o seu trabalho, parece só ter conseguido suscitar algum entusiasmo nos frequentadores do Clube dos Exploradores de Nova Iorque ou nos do Lar dos Marinheiros Noruegueses, em Brooklyn, para onde teve de se mudar por razões financeiras.
Os sábios americanos, por seu turno, moveram-lhe furiosa oposição. Pura e simplesmente não admitiam que fosse materialmente possível a um nebuloso e remoto povo concretizar, com os recursos da época, a navegação de 8000 quilómetros pretendida pelo investigador norueguês.
Thor Heyerdahl narra, no seu livro, como exemplo das dificuldades que enfrentou, o tempestuoso encontro com um desses velhos sábios num museu de Nova Iorque:
- (O sábio) O senhor não tem razão. Está erradíssimo!
- (Thor) Mas o senhor ainda não leu os meus argumentos...
- (O sábio) Argumentos! Não é possível tratar de problemas etnográficos como se fosse um romance policial!
- (Thor) Por que não? Baseei todas as minhas conclusões em observações pessoais e em factos registados pela Ciência.
- (O sábio, afastando para o lado o manuscrito de Thor e inclinando-se sobre a mesa) É bem verdade que a América do Sul foi a pátria de algumas das mais curiosas civilizações da antiguidade, e que não sabemos para onde foram quando os Incas passaram a dominar ali. Uma coisa, porém, sabemos ao certo: é que nenhum povo da América do Sul se passou para as ilhas do Pacífico. Sabe por quê? É simples. Porque não podiam chegar lá. Não dispunham de botes!
- (Thor) Mas dispunham de jangadas. Jangadas de madeira de balsa!
- (O sábio, sorrindo) Não me venha dizer que o senhor é capaz de tentar uma excursão, desde o Peru até às ilhas do Pacífico, numa jangada de madeira de balsa!
Thor Heyerdahl não respondeu, mas é possível que se tenha decidido pelo grande projecto durante cenas como esta.
Daí em diante, forcejou por obter apoios diversos, incluindo o de patrocinadores. Reuniu, também, elementos adicionais, designadamente sobre as jangadas de madeira de balsa (mais leve do que a cortiça) cujos segredos de construção tinham sido herdados pelos Incas do misterioso povo branco de Kon-Tiki. Para o efeito, estudou minuciosamente os relatos e os desenhos deixados pelos Espanhóis após o seu encontro com os Incas.
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E tratou, naturalmente, de recrutar, não sem dificuldades, aqueles que seriam os seus companheiros de viagem. Todos noruegueses, com excepção do sueco Danielssen.
Na foto acima, da esquerda para a direita: Knut Haugland - Bengt Danielssen - Thor Heyerdahl (de braços cruzados) - Erik Hesselberg (de boina) - Torstein Raaby - Herman Watzinger.
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Os troncos de madeira de balsa foram obtidos por Thor Heyerdahl na selva do Equador, onde os Incas iam buscá-los outrora.
Acompanhado por Herman Watzinger, deslocou-se até às plantações de balsa de D. Frederico von Buchwald, situadas nas proximidades de Quivedo, bem no interior do país.
O troço final da viagem foi percorrido num jeep conduzido por um capitão do exército do Equador, especialmente destacado para os proteger. Terra de chuvas abundantes, de coberturas vegetais quase impenetráveis, de escorpiões gigantes e de venenosas serpentes a balouçarem-se nas ramarias. E, de acordo com testemunhos locais, ainda infestadas por degoladores profissionais e caçadores de cabeças (Thor conta que, em Quito, lhes foram oferecidas por preço módico - a ele e a Watzinger -, duas cabeças humanas habilmente mumificadas e reduzidas segundo a melhor técnica do ramo).
Enfim derrubados, os troncos de balsa flutuaram sem problemas pelos rios da região até chegarem ao litoral do Equador. Daí partiram, carregados num barco a vapor, até ao porto de Callao, no Peru, onde a aventura teria início.
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A jangada, que Thor Heyerdahl resolveu baptizar com o nome de "Kon-Tiki" em homenagem ao remoto chefe do misterioso povo branco, foi construída pelos expedicionários nos estaleiros da Marinha peruana em Callao, para o que foi necessária autorização expressa do Presidente da República.
Foram escolhidos os nove troncos de maior envergadura, em cuja superfície se traçaram sulcos fundos para impedir que as cordas de cânhamo que os deviam manter no lugar escorregassem ao longo deles.
Seguindo a técnica dos seus remotos antecessores, os construtores não utilizaram um único prego, cavilha ou cabo de arame.
Os troncos de balsa foram primeiro colocados lado a lado na água, de modo que pudessem flutuar livremente na sua posição natural antes de serem fortemente amarrados uns aos outros. O toro mais longo, com 13,70 metros, foi colocado no centro, projectando-se bem além dos outros numa e noutra extremidade.
À ré, foram fixados toletes para sustentarem o comprido remo de direcção.
A jangada foi tomando forma, laboriosamente ligada com cordas de cerca de trezentos comprimentos diferentes, cada qual amarrada com nós firmíssimos.
Sobre ela foi posta uma coberta feita de taquaras, amarradas na forma de sarrafos separados e cobertos com esteiras soltas de bambu trançado.
No meio da jangada, mas mais perto da popa, foi erguida uma pequena cabina aberta, feita de bambu, com telhado também de bambu combinado com folhas de bananeira que se encaixavam umas nas outras como se fossem telhas.
À frente da cabina levantaram-se dois mastros. Eram de mangueiro, de uma dureza de ferro, inclinavam-se um para o outro e, no topo, estavam amarrados em cruz.
Em seguida, foi içada a verga de bambu e desenrolada a vela, que tinha ao centro o desenho da cara barbada de Kon-Tiki: tratava-se da cópia fiel da cabeça do Rei-Sol esculpida em pedra vermelha numa estátua das ruínas da cidade de Tiahuanaco.
A 27 de Abril, carregados os mantimentos, um bote auxiliar de borracha e as bagagens indispensáveis, foi hasteada na jangada a bandeira da Noruega. Ao longo da verga, no tope do mastro, tremulavam as bandeiras dos países que, de uma forma ou doutra, tinham dispensado algum apoio à expedição.
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A largada da "Kon-Tiki" para a sua histórica viagem aconteceu no porto de Callao, Peru, no dia 28 de Abril de 1947.
O momento foi testemunhado por uma multidão entusiasmada. Entre ela, viam-se altas autoridades peruanas e os representantes de diversos países.
Em homenagem aos seis notáveis aventureiros, apresentaremos nas datas abaixo indicadas os episódios mais relevantes da grande viagem (conforme Thor Heyerdahl os descreveu):
16-Junho-2021 - 2.ª Parte - aqui
19-Junho-2021 - 3.ª Parte - aqui
23-Junho-2021 - 4.ª Parte - aqui
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