sábado, 13 de fevereiro de 2021

Aberturas de Grandes Livros - "Morreram pela Pátria" (Mikail Cholokov - Rússia)



Em 22 de Junho de 1941, repetindo o erro de Napoleão Bonaparte, Adolf Hitler ordenou a invasão da União Soviética pelos seus exércitos, violando assim o pacto de não-agressão recentemente celebrado com Stalin.

Esse foi o começo de um terrível período de mortandades e de indizíveis misérias, que os soviéticos enfrentariam, à custa da perda de milhões de vidas, numa Grande Guerra Patriótica que salvou a sua terra das hordas nazis.

Na magistral abertura deste romance notável, que abaixo se transcreve, Mikail Cholokov reflecte o clima de tranquilidade e despreocupação que se vivia na Rússia às vésperas da invasão. Ninguém suspeitava de que a Alemanha pudesse renegar o acordo recente.

Nem mesmo Stalin, desconfiadíssimo por natureza e por necessidade, alguma vez imaginou que Hitler tivesse o arrojo e a deslealdade de o fazer - pelo menos naquela altura. O ditador continuaria, aliás, a não acreditar na invasão - apesar dos alertas desesperados que lhe chegavam das fronteiras - quando os tanques alemães já progrediam velozmente em território russo.

Tal como Stalin e tal como milhões dos seus compatriotas, também o agrónomo-chefe Nicolau Streltsov, personagem do romance, não desconfiava de nada. A sua grande preocupação eram as sementeiras e os trigos da granja "O Caminho do Socialismo". Nada mais.
À sua volta, naquela manhã, só escutava a chuva, o vento, o crepitar da lareira. A Natureza, indiferente como sempre às coisas banais dos seres humanos, prosseguia o seu curso eterno com a periodicidade e a regularidade habituais.

Eis como, em poucas dezenas de linhas geniais, Mikail Cholokov consegue passar para os seus leitores o clima de insuspeição, de sossego e de despreocupação que reinava então entre os cidadãos soviéticos. Aquele sossego ilusório e enganador que precede muitas vezes as maiores tragédias.
A seguir, como sabem, viria o inferno para a Rússia. Um inferno que Stalin devolveria a Hitler, com juros, no ano de 1945.


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“Ao alvorecer, um vento de Primavera, forte e morno, vindo do sul, açoitou o vale.
Pelos caminhos, os charcos petrificados pela geada nocturna cobriram-se de gotinhas. A última neve, uma neve esponjosa que a noite gelara à superfície, acumulava-se a ranger nas ravinas.

Repelido para o norte, o negro velário das nuvens desfilava, desdobrando-se, baixo, num céu de tinta, e resistindo ao vento, lento cortejo majestoso que ultrapassava, com silvos de chamariz, fendendo o ar húmido num tumulto alegre, os inúmeros bandos de patos, marrecos e gansos, que se precipitavam para o local secular das suas migrações para o calor.


Nicolau Streltsov, agrónomo-chefe da M. T. S. de Chernoiarsk, despertou muito antes de ser dia. As gelosias gemiam nas janelas. No fogão, o vento cantava um lamento frouxo. Uma placa de zinco despregada chocalhava no tecto.

Deitado de costas, com as mãos cruzadas sob a nuca, o cérebro vazio de pensamentos, Streltsov contemplava o azul crepuscular do amanhecer, aplicando o ouvido às rajadas de vento que batiam nas paredes e ao respirar igual, tranquilo, quase infantil, de sua mulher, adormecida a seu lado.


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Gotas de chuva tamborilaram no tecto. O vento pareceu amainar. Ouvia-se a água sussurrar, golfar, gorgolejar voluptuosamente na madeira nova e depois cair, pesada e mole, na terra húmida.

O sono não vinha. Streltsov levantou-se e, descalço, andando com precaução sobre as tábuas movediças, foi até à mesa, acendeu o candeeiro, sentou-se e fumou.

Uma corrente de ar acre soprava pelos interstícios do soalho ajustado à matroca. O homem encolheu as pernas musculosas, procurou uma posição mais cómoda e pôs-se de novo a ouvir: a chuva continuava; caía até cada vez com mais força.
Muito bem; isto vai dar humidade”, verificou, satisfeito.

Decidiu imediatamente partir para a inspecção da manhã, a fim de ver como estavam os trigos de Inverno na granja "O Caminho do Socialismo" e lançar uma vista de olhos às sementeiras do Outono precedente. (…)”


O autor: Mikail Cholokov (1905-1984)
Prémio Nobel da Literatura (1965)
Saiba mais sobre ele - aqui
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Hino da União Soviética:


Fonte: Mikail Cholokov - Morreram pela Pátria - Publicado por Portugália Editora - Lisboa - Portugal - 1966.
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