sábado, 21 de março de 2009

A Globalização - "Como se brincou com o fogo..."


"Quanto mais a actual crise - no início financeira, agora também económica - se desenvolve e se aprofunda, mais nítida se torna a percepção pela opinião pública de que se andou a brincar com a globalização.
Mais prosaicamente, andou-se a brincar com o fogo.

Os principais responsáveis por esta situação são inegavelmente os governos dos países mais ricos – em particular dos EUA e dos estados europeus - que, desde os anos oitenta do século passado apostaram em competir entre si para reduzir as defesas das respectivas economias em face dos choques provocados pela rápida mundialização económica e financeira.

Foi assim que se liberalizou sem regras o comércio mundial, que se desregularam os mercados monetários e financeiros, permitindo a especulação desenfreada tanto entre moedas como entre activos financeiros, que se concedeu plena liberdade de manobra ao poder das multinacionais e se fez proliferar os off-shores.

Ao mesmo tempo, a opinião pública era intoxicada com campanhas entoando loas à globalização, campanhas que eram em grande parte impulsionadas pelos governos e organizações internacionais (FMI, OCDE, União Europeia, etc).
Para agravar ainda mais as responsabilidades das autoridades, basta verificar que estas nem sequer podem invocar ignorância ou ausência de alternativas. Não faltaram, com efeito, avisos sobre os efeitos negativos da globalização descontrolada.
E basta recordar o desprezo irónico e desdenhoso com que as autoridades encararam propostas sérias de reforma como a célebre “taxa Tobin”, destinada a reduzir os fluxos de capitais especulativos, para avaliarmos o acréscimo de responsabilidade que recai sobre essa constelação de governos.

O caso europeu é especialmente notável.
O Acto Único Europeu de 1987, que apontou para a realização do mercado interno comunitário e o Tratado de Maastricht em 1992, que criou as actuais instituições europeias na área da economia, foram os instrumentos que tornaram os cidadãos dos estados europeus completamente indefesos face à globalização e ao desemprego.

Estou profundamente convicto que não se trata de invenção demagógica, mas de uma realidade palpável o facto de, no domínio económico, e desde 1992, as instituições europeias actuarem sobretudo em benefício das empresas multinacionais.
Quem conhece, por exemplo a actuação concreta da Comissão Europeia em questões económicas ou a evolução dos critérios do Tribunal de Justiça em questões de concorrência e ajudas de Estado, sabe que tem sido efectivamente assim.

Sem um protesto sequer dos governos, que deveriam defender os interesses das respectivas actividades produtivas nacionais.
Coisas semelhantes verificaram-se por toda a parte. Mas o que torna o caso europeu especialmente repulsivo é que tudo isto foi feito – em nome do controlo da globalização!
Quando é certo que foram as instituições comunitárias a trazer o vendaval da globalização descontrolada para as nossas portas.

Mas conforme reza o final de um velho aforismo “não se pode enganar toda a gente durante todo o tempo”. Por isso, as opiniões públicas europeias - que já se tinham manifestado negativamente em alguns referendos - à medida que a crise se desenrola, vão sedimentando a sua convicção de que têm sido profundamente enganadas.

Talvez esta evolução seja de bom augúrio.
Será porventura a forma de voltar atrás e reencaminhar a integração europeia no sentido de criar efectivamente as instituições que permitam proteger os cidadãos dos choques da globalização.
Caminho que tem de contar com um papel mais importante das políticas definidas a nível nacional.
A forma mais insidiosa de desproteger os cidadãos no espaço europeu face ao poder das multinacionais e dos especuladores tem sido a de reduzir as autonomias dos estados membros em benefício de um inaceitável centralismo a nível europeu.

Bastou o desencadear da crise para verificarmos que a única protecção com que os cidadãos de facto podem contar é a que é prestada pelo respectivo Estado.
Está aí uma nova realidade, que torna caduco, ainda antes de existir, o Tratado Reformador, cuja intenção era perpetuar as instituições comunitárias responsáveis pelo actual desastre económico.
Possa esta nova realidade criar as condições para uma nova Europa." (*)

(*) - João Ferreira do Amaral - in Revista Tempo Livre, n.º 201, Fevereiro de 2009, Fundação INATEL - Lisboa - Portugal.

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