quinta-feira, 15 de maio de 2008

Esmeralda



De Maria José Nogueira Pinto, um artigo de hoje no Diário de Notícias.

Esmeralda

Sempre que vejo o nome da criança nos jornais sinto um aperto mitral, uma mistura de angústia e vergonha.
Esmeralda tornou-se conhecida pela sua má fortuna desde que, vista como uma res nullius, foi dada ao pai biológico por um juiz que pensou ser um qualquer deus, ao ver nesse pai faltoso um seu filho pródigo e por isso merecedor de extrema benevolência para com a sua consciência, forçada e tardia, dos deveres da paternidade. Desde então, Esmeralda tornou-se uma criança-objecto que agora mandam ir para ali, que agora mandam ir para acolá, que agora, afinal, mandam esperar mais um bocadinho.

Os pais afectivos, que são afinal os pais do coração, viraram a sua vida do avesso para poupar Esmeralda às consequências de uma sentença mal dada e lutam por ela, que se não pode defender, contra aqueles que, supostamente e em nome do Estado, deviam pôr o seu interesse e bem-estar acima de tudo.
Tantos anos depois de se ter conseguido despertar as consciências para os direitos das crianças privadas de um meio familiar adequado, de se ter levado a cabo esforços legislativos para conseguir uma Lei da Adopção que combinasse segurança e celeridade, de se ter verbalizado a preocupação do número crescente de crianças institucionalizadas é inquietante que uma coisa destas possa ainda acontecer.

Dir-me-ão que o juiz não estava familiarizado com a matéria, que nem todos o tribunais têm juízes que dominem a filosofia e os princípios que presidem ao enquadramento jurídico dos menores.

E eu pergunto, que culpa tem a Esmeralda por o seu caso ter ido parar ao Tribunal da Sertã? Vamos, por esse facto, consagrar uma tão iníqua quanto comprometedora desigualdade de oportunidades?

Convém lembrar que o casal de acolhimento era, também, um casal adoptante, já que, pouco antes da fatídica decisão de atribuir o poder paternal ao pai biológico, os competentes serviços da Segurança Social tinham iniciado o processo de confiança judicial com vista à adopção de Esmeralda.
Este casal tinha, pois, sido avaliado e considerado idóneo, ao mesmo tempo que a mãe biológica reconhecia ser este o melhor destino para a filha.

Não se previa que um pai ausente, forçado a ver a sua paternidade reconhecida por via judicial, que nunca manifestara interesse pela criança, que nunca cuidara, ao que se sabe, da companheira durante a gravidez, que as deixara entregues à sua sorte viesse a ser considerado por um juiz como o pai ideal.

E porque estas questões são muito sérias e complexas, ouviram-se, e bem, os especialistas, psicólogos, pedopsiquiatras, técnicos de Serviço Social que, em uníssono, alertaram para os riscos que tal decisão acarretaria para a criança.

Porque foi tudo, então, inútil?

Este caso gera necessariamente um sentimento de profunda inquietação: pela alea na decisão judicial; pelo desencontro entre os serviços da Segurança Social e os tribunais que, nestes casos, deviam andar de braço dado; porque em Portugal aumenta o abandono e a institucionalização das crianças e o modo como funcionam os tribunais é decisivo para minimizar os danos emergentes. Que expectativas podem elas ter?

Mas o mais grave é o facto de ser possível, a quem está investido de poder público para o fazer, decidir sobre a vida de uma criança sem ter em devida conta dois princípios fundamentais: o seu melhor interesse e o respeito pelo seu tempo útil. É que nenhuma sentença pode atropelar, mesmo que seja por uma interpretação muito restrita, aquilo que é o objectivo principal do legislador: dar à criança o futuro a que tem direito e não submetê-la a experiências ou a tentativas que, com grande probabilidade, a magoarão irremediavelmente.

Não há por que dar uma oportunidade a um pai inexistente se, para isso, se retira à criança a sua única oportunidade.

E, sobretudo, não há por que gastar quatro dos seis anos de vida da Esmeralda, dois terços da sua existência, numa série de más práticas.

Vejo com expectativa que o Tribunal de Torres Novas deu seguimento aos pedidos de alteração do poder paternal.
Oxalá, agora, chamem o Rei Salomão.

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