sábado, 9 de janeiro de 2021

O assassínio de D. Carlos I, penúltimo rei de Portugal, e do seu filho, Príncipe D. Luís Filipe (1908)




A 1 de Fevereiro de 1908, no regresso de mais uma estadia em Vila Viçosa, o rei D. Carlos e o princípe herdeiro, D. Luís Filipe, foram assassinados em pleno Terreiro do Paço, em Lisboa, na volta para a rua do Arsenal.

De um só golpe, os assassinos - Costa e Buiça - decapitavam a monarquia portuguesa, deixando o trono nas mãos de um jovem e pouco preparado D. Manuel, sem capacidade nem margem de manobra para gerir uma situação política explosiva que culminaria com a queda da monarquia e a implantação da República a 5 de Outubro de 1910.

A 21 de Maio de 1908, quase 4 meses após o regicídio, o já então rei D. Manuel II, que seguia com os pais e o irmão na carruagem fatídica, descreveu a forma como viveu o trágico acontecimento, sob o título de "Notas absolutamente íntimas", de que se apresenta o excerto que se segue.

No fim da postagem anexa-se um pequeno texto sobre o reinado de D. Carlos I.

Rei D. Carlos (1863-1908)
Morto no dia 1 de Fevereiro.


O Relato de D. Manuel II, último rei de Portugal:


«Há já uns poucos de dias que tinha a ideia de escrever para mim estas notas íntimas, desde o dia 1 de Fevereiro de 1908, dia do horroroso atentado no qual perdi barbaramente assassinados o meu querido Pai e o meu querido Irmão.

Isto que aqui escrevo é ao correr da pena, mas vou dizer franca e claramente, e também sem estilo, tudo o que se passou. Talvez isto seja curioso para mim mesmo, um dia, se Deus me der vida e saúde. Isto é uma declaração que faço a mim mesmo. Como isto é uma história íntima do meu reinado, vou iniciá-la pelo horroroso e cruel atentado.

No dia 1 de Fevereiro regressavam Suas Majestades El-Rei D. Carlos I, a Rainha, a senhora D. Amélia, e Sua Alteza o Príncipe Real, de Vila Viçosa.
Eu tinha vindo mais cedo (uns dias antes) por causa dos meus estudos de preparação para a Escola Naval. Tinha ido passar dois dias a Vila Viçosa e tinha regressado novamente a Lisboa.

Na capital estava tudo num estado de excitação extraordinária: bem se viu aqui no dia 28 de Janeiro, em que houve uma tentativa de revolução, a qual não venceu. (...).

Meu Pai não tinha nenhuma vontade de voltar para Lisboa. Bem lembro que estava para voltar para Lisboa 15 dias antes e que quis ficar em Vila Viçosa. Minha Mãe [a rainha D. Amélia], pelo contrário, queria forçosamente vir. Recordo-me perfeitamente desta frase que me disse na véspera ou no próprio dia em que regressei a Lisboa depois de ter estado dois dias em Vila Viçosa. "Só se eu quebrar uma perna é que não volto para Lisboa no dia 1 de Fevereiro".

Melhor teria sido que não tivessem voltado, porque não tinha eu perdido dois entes tão queridos e não me achava hoje Rei! Enfim, seja feita a Vossa vontade, Meu Deus!

Príncipe herdeiro D. Luís Filipe (1887-1908)
Morto no dia 1 de Fevereiro.

(...) Como disse mais atrás, eu estava em Lisboa quando foi 28 de Janeiro; houve uma pessoa minha amiga (que, se não me engano, foi o meu professor Abel Fontoura da Costa) que disse a um dos Ministros que eu gostava de saber um pouco o que se passava, porque isto estava num tal estado de excitação.
O João Franco escreveu-me então uma carta que eu tenho a maior pena de ter rasgado, porque nessa carta dizia-me que tudo estava sossegado e que não havia nada a recear! Que cegueira!

Mas passemos agora ao fatal dia 1 de Fevereiro de 1908, sábado. De manhã tinha eu tido o Marquês Leitão e o King.
Almocei tranquilamente com o Visconde d'Asseca e o Kerausch. Depois do almoço estive a tocar piano, muito contente porque naquele dia dava-se pela primeira vez "Tristão e Ysolda", de Wagner, em S. Carlos.
Na véspera tinha estado tocando a 4 mãos, com o meu querido mestre Alexandre Rey Colaço, o Septuor de Beethoven, que era, e é, uma das obras que mais aprecio deste génio musical.

Depois do almoço à hora habitual, quer dizer, às 13:15h, comecei a minha lição com o Fontoura da Costa, porque ele tinha trocado as horas da lição com o Padre Fiadeiro.
Acabei com o Fontoura às 15 horas e pouco depois recebi um telegrama da minha adorada Mãe dizendo-me que tinha havido um descarrilamento do comboio na Casa-Branca, não tinha acontecido nada, mas que vinham com três quartos de hora de atraso.
Vendo que nada tinha acontecido dei graças a Deus, mas nem me passou pela mente, como se pode calcular, o que havia de acontecer.

Rainha D. Amélia, esposa de D. Carlos
e mãe de D. Luís Filipe e de D. Manuel
Seguia na carruagem, mas escapou à morte com o filho Manuel.

Agora pergunto-me eu: aquele descarrilamento foi um simples acaso? Ou foi premeditado para que houvesse um atraso e se chegasse mais tarde? Não sei. Hoje fiquei em dúvida. Depois do horror que se passou fica-se duvidando de muita coisa.

Um pouco depois das 4 horas saí do Paço das Necessidades num "landau" com o Visconde d'Asseca em direcção ao Terreiro do Paço para esperarmos Suas Majestades e Alteza. Fomos pela Pampulha, Janelas Verdes, Aterro e Rua do Arsenal. Chegámos ao Terreiro do Paço.

Na estação estava muita gente da corte e mesmo sem ser. Conversei primeiro com o Ministro da Guerra, Vasconcellos Porto, talvez o Ministro de quem eu mais gostava no Ministério do João Franco. Disse-me que tudo estava bem.

Esperamos muito tempo; finalmente chegou o barco em que vinham os meus Pais e o meu Irmão. Abracei-os e viemos seguindo até à porta onde entrámos para a carruagem os quatro. No fundo a minha adorada Mãe, dando a esquerda ao meu pobre Pai. O meu chorado Irmão diante do meu Pai e eu diante da minha Mãe.

Sobretudo o que agora vou escrever é que me custa mais: ao pensar no momento horroroso que passei confundem-se-me as ideias. Que tarde e que noite mais atroz! Ninguem n'este mundo pode calcular nem sonhar o que foi. Creio que só a minha pobre e adorada Mãe e Eu podemos saber bem o que isto é!

Vou agora contar o que se passou n'aquela histórica Praça. Saímos da estação bastante devagar. Minha Mãe vinha-me a contar como se passou o descarrilamento [do comboio] na Casa Branca quando se ouviu o primeiro tiro no meio do Terreiro do Paço, mas que eu não ouvi.
Era sem dúvida o sinal para começar aquela monstruosidade. [...]

Terreiro do Paço, Lisboa.
O momento do atentado.


Eu estava olhando para o lado da estátua de D. José e vi um homem de barba preta com um grande gabão.
Vi esse homem abrir a capa e tirar uma carabina.
Estava tão longe de pensar num horror destes que disse para mim mesmo: «Que má brincadeira.»

O homem saiu do passeio e veio pôr-se atrás da carruagem e começou a fazer fogo. [...] Logo depois de o Buiça ter feito fogo (que eu não sei se acertou) começou uma perfeita fuzilaria como numa batida às feras. [...]

Saiu de baixo da arcada do Ministério um outro homem que desfechou uns poucos de tiros à queima-roupa sobre o meu pobre Pai. Uma das balas entrou pelas costas e outra pela nuca, o que o matou instantaneamente. [...]

Depois disto não me lembro quase do resto: foi tão rápido! Lembro-me perfeitamente de ver minha adorada e heróica Mãe de pé na carruagem com um ramo de flores na mão gritando àqueles malvados animais: "Infames, infames."

A confusão era enorme. [...] Vi o meu Irmão em pé dentro da carruagem com uma pistola na mão. [...]

De repente, já na rua do Arsenal, olhei para o meu queridíssimo Irmão. Vi-o caído para o lado direito com uma ferida enorme na face esquerda, de onde o sangue jorrava como de uma fonte. Tirei um lenço da algibeira para ver se lhe estancava o sangue. Mas que podia eu fazer? O lenço ficou logo como uma esponja. [...]

Eu também fui ferido num braço por uma bala. Faz o efeito de uma pancada e um pouco de uma chicotada. [...]

Agora que penso neste pavoroso dia e no medonho atentado parece-me e tenho quase a certeza (não quero afirmar, porque nestes momentos angustiosos perde-se a noção das coisas) que eu escapei por ter feito um movimento instintivo para o lado esquerdo. [...]"

Funeral de D. Carlos
e de seu filho D. Luís Filipe



D. Manuel II (1889-1932),
sucessor de D. Carlos I
Último rei de Portugal (deposto em 1910)
Saiba mais sobre ele (aqui)
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Nota sobre D. Carlos I (1863-1908)

Nasceu em 28 de Setembro de 1863, no Palácio da Ajuda, em Lisboa.
De seu nome completo Carlos Fernando Luís Maria Victor Miguel Rafael Gabriel Gonzaga Xavier Francisco de Assis José Simão.

Filho do rei D. Luís I e de D. Maria Pia de Sabóia (esta, por sua vez, filha do rei Vítor Manuel II de Itália).

D. Carlos recebeu uma educação que pretendia prepará-lo para futuro rei.

Em Abril de 1886 foi anunciado o seu noivado com Amélia de Orléans, filha dos Condes de Paris, com quem casou, em Lisboa, a 22 de Maio desse ano.
Em 1887 nasceu o seu primeiro filho, D. Luís Filipe.
Em 1888 nasceu e morreu uma filha.

Em 1889, com a morte de seu pai, D. Luís I, ascendeu ao trono, sendo aclamado rei em Dezembro.
Nesse mesmo ano nasceu o seu terceiro filho, D. Manuel (que seria o último rei de Portugal; foi deposto pela revolução republicana em Outubro de 1910).

Pouco depois de subir ao trono, D. Carlos enfrentou uma profunda crise. Em 1890, morreu o sonho português do mapa cor-de-rosa, com o Ultimatum inglês.
Com efeito, os projectos portugueses de união entre Angola a Moçambique chocavam com os interesses britânicos de ligação do Cairo ao Cabo.

Os portugueses foram obrigados a renunciar ao seu projecto e, internamente, a reacção foi vigorosa. O ambiente era de grande contestação anti-britânica e esta foi capitalizada pelo movimento republicano, sendo que a contestação se tornou, também, anti-monárquica.
No ano seguinte, em 1891, assistiu-se à primeira tentativa revolucionária republicana, o “31 de Janeiro”, no Porto.

Num contexto de crise do liberalismo, a vida política degradava-se. D. Carlos tentou, no plano externo, remediar junto das principais cortes europeias a situação de crise em que havia mergulhado o império colonial português.
Em 1899, foi assinado o Tratado de Windsor com a Inglaterra, que definiria as fronteiras coloniais entre os dois países.

No ano de 1903 recebeu Eduardo VII de Inglaterra, em Abril, e, em Dezembro, Afonso XIII de Espanha.
Em 1904 retribuiu a visita e deslocou-se a Inglaterra.

Em 1905 recebeu a visita da rainha Alexandra de Inglaterra, do imperador Guilherme II da Alemanha e do presidente da República francesa Loubet.

Em 1906 deslocou-se a Espanha, em viagem oficial. Estas campanhas internacionais foram acompanhadas, no plano interno, pela chamada ao governo, em 1906, de João Franco.

Em 1907, D. Carlos fez a sua décima segunda e última campanha oceanográfica.

A sua biografia não se esgota na vida política. Dedicou grande atenção às propriedades da Casa de Bragança, designadamente em Vila Viçosa, onde com frequência organizava grandes caçadas.

Manifestou também, desde cedo, uma “paixão pelo mar”. D. Carlos I, em 1896, dirigiu a primeira campanha oceanográfica portuguesa, actividade que manteve, anualmente, até 1907, sendo premiado internacionalmente.

Foi igualmente um aguarelista de mérito (relembre aqui).

Morreu no atentado do Terreiro do Paço, a 1 de Fevereiro de 1908, que vitimou igualmente o seu filho primogénito (o príncipe Luís Filipe).

(Fonte: Fundação Mário Soares, Lisboa, Portugal)

Terreiro do Paço (ou Praça do Comércio), Lisboa, onde ocorreu o atentado (ao fundo, à esquerda).

Placa alusiva ao atentado, no Terreiro do Paço, Lisboa.

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