domingo, 8 de julho de 2007

História de Portugal? História de Espanha? Ou "História Ibérica"?


Descansem os de sentido patriótico mais apurado, que não venho fazer a apologia de uma qualquer união política apressada - nem lenta -, mas apenas dizer que continua a espantar-me a forma autista como, com raras excepções, se continua a encarar e a escrever a história deste rincão ocidental deitado ao mar.

Como se Espanha - e antes Castela, mais Aragão, mais Navarra, mais a Granada muçulmana... - não existissem, ou existissem apenas como comparsas de segunda, espécie de vilões longínquos e ameaçadores, sobretudo a primeira, sempre predisposta a devassar fronteiras e direitos para se apoderar da nossa independência, tão duramente reclamada e obtida pelo pai Afonso...

A Espanha dos nossos compêndios tem sempre ou quase sempre o mesmíssimo papel que em Walt Disney assume o Lobão, dentuça rebrilhante de cobiças pela carninha rosada dos três porquinhos. E, no entanto, como se oculta - ignorância? premeditação? - que, do lado de cá, através de matrimónios calculistas ou de acções armadas, se procurou várias vezes unir as duas coroas num corpo único (o que daria obviamente lugar, a prazo, à absorção política do anão lusitano pelo gigante da Meseta).

Lembram-se de João II, o maior dos nossos reis? - a casar o filho com a castelhana, na secreta esperança de que a nora se transformasse na herdeira dos Reis Católicos, juntando-se depois tudo em família, mas com comando do lado "de cá"... Não surtiu efeito, o rapaz caiu mal do cavalo, à beira do Tejo, e a coisa ficou por ali. Mas logo veio Manuel I, primo e sucessor de João II, que casou ele próprio com a infanta espanhola para pôr no mundo um menino - Miguel da Paz - que chegou a ser o potencial e único herdeiro dos dois tronos. Morreu, todavia, criança, e lá se foi outra vez a união desejada por quem a tinha engendrado.

E Afonso V, o Africano, pai de João II, que não fez por menos e invadiu em armas o reino vizinho para reclamar pela violência tudo para si - Portugal e Castela - com argumentos quase decalcados dos que, menos de um século antes, invocara Juan I, o segundo dos Trastâmaras castelhanos, para exigir o mesmo até soçobrar em Aljubarrota (1385) diante dos portugueses de João de Avis e de Nuno Álvares Pereira.
O nosso generoso mas estouvado Afonso V sofreu, como se sabe, uma derrota definitiva em Toro (1476) - e, pesem algumas carpideiras descentradas do real entendimento das coisas, foi isso que nos salvou a independência.

Não defendo a união política. O que tão-somente sustento é que não é possível, nem desejável, abordar-se com rigor intelectual o passado comum ibérico sem uma perspectiva da comunidade de interesses que então constituíamos - pelo menos ao nível que contava, que era o das altas esferas em que tudo se planeia e decide.
Uma história que se entenda e divulgue de outra maneira - a maneira antiga - pode ser mais tranquilizadora, mas será decerto uma história amputada e coxa.

Transcrevo uns excertos do que a propósito escreveu o insuspeito António Sardinha:


"Quando eu vim para o exílio trazia contra Espanha todos os preconceitos da minha inteligência e da minha sensibilidade. É certo que já pressentia a importância duma maior aproximação entre os dois povos, sobretudo pelo que tocava à continuidade e ao desenvolvimento da nossa influência na América impropriamente chamada latina. O estudo da história levava-me também à compreensão de muitas figuras espanholas, relacionadas com a vida do nosso país. E assim aprendera lentamente, mas com juízo seguro, a corrigir bastantes das prevenções do meu patriotismo alarmado (...)

(...) Nada mais agradável, para quem tem o amor das ideias e o gosto salutar da verdade, do que reconhecer os seus erros, se os acolheu com espírito livre e sincero. É esse o caso presente, que eu me apresso a confessar num cuidadoso exame de consciência. Evidentemente não é para aqui a análise das mil e uma circunstâncias que afastaram as duas pátrias uma da outra, como se de permeio ficasse o deserto sem fim ou, numa comparação mais incisiva, a muralha infranqueável da China. O que me cabe é acentuar, antes de mais nada, que dum convívio atento com a moderna erudição de Espanha o meu nacionalismo só tirou para si raízes mais fundas e mais documentadas (...)

(...) Claro que nos achamos assim em face de dois etnos diferenciados, em que visivelmente afloram as tendências separatistas das duas pátrias. Separatistas, mas não antagónicas - registe-se. E o erro político de tantos séculos é aí medularmente que reside: - na entranhada e sistemática desconfiança que hoje, tão vizinhos e tão parentes, nos põe uns para os outros de "espaldas vueltas" (...)


(...) Ora, o que não admite dúvidas é que a esse erro político, a essa entranhada e sistemática desconfiança, se deve talvez a decadência das duas nações peninsulares. Se por acaso o esforço absorcionista de Castela colocou em risco a existência autónoma de Portugal, também Portugal colocou mais duma vez em risco a existência autónoma de Castela. Refugiada na dureza da sua meseta, jamais Castela poderia, porém, ser nossa, nem nós, enquadrados na depressão ocidental da Península, vivendo do mar e para o mar, permaneceríamos muito tempo reduzidos pela pressão centrípeta de Castela. As razões da nossa autonomia não são apenas razões dinásticas (...) É conveniente lembrarmos que um autorizado nome espanhol, Torres Campos, ia pedir à própria geologia a explicação da independência de Portugal (...)


(...) Vê-se já por que, exactamente no exílio, cheio de preconceitos sentimentais e intelectuais, o meu nacionalismo se fortificou e esclareceu, ao contacto da mentalidade espanhola - ao mesmo tempo que uma outra noção de "hispanismo" o desdobrava e completava, pela ideia de solidariedade social e espiritual necessária, como pão para a boca, ao prestígio e à vitalidade externa de ambas as pátrias. E eu que envolvera em tantas tiradas de ódio melodramático a Espanha do planalto, a Espanha da conquista, imaginando-a imperialista e agressora, não tardei a sentir, com Almeida Garret e com Oliveira Martins, a fascinação antiga da Grande Madre, aleivosamente difamada.


Foi em pleno coração de Castela que as fontes ocultas do meu ser me testemunharam a presença eterna duma comunhão de origens e de fins que, para desgraça nossa, desde que adormeceu na cinza das coisas mortas, nos levou consigo a única possibilidade de, novamente (...), Portugal desempenhar no mundo a sua alta missão civilizadora. Podemo-nos orgulhar, de que nós, e connosco Castela, nossa irmã mais velha, somos um poder criador de nacionalidades. Do outro lado do mar vinte estados de formação ibérica bendizem com carinho filial o nome de Espanha. Ao coro das suas vozes junta-se a voz do Brasil, apelando debalde para Portugal (...)


(...) Se o lusitano de cabelos corredios difere do celtibero, mais mesclado com cabeleira encrespada, um e outro são "hispânicos" de nascimento e finalidade, lutando ambos em Numância contra o romano, expulsando juntos o muçulmanismo na epopeia da Reconquista; e acabando por abrir à Europa um oceano novo, com a bula solene dum Papa repartindo pelos dois paternalmente as terras que ainda estivessem por ocupar.


Tal foi a "Espanha" que eu vim descobrir a Espanha. É a Espanha-Madre - são as "Espanhas" das inscrições clássicas e dos roteiros primitivos. Tanto é Castela como Aragão, tanto é Portugal como Navarra, senti-a num dia amargo de saudade, à sombra da catedral de Toledo (...)".


(Escrito por António Sardinha em 1919 - Livro: "À Lareira de Castela" - Capítulo "À Descoberta de Espanha" - Editorial Restauração - Excertos recolhidos entre as págs. 5 e 13).

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