segunda-feira, 27 de maio de 2019

Grandes Livros - A PESTE (Albert Camus)

 

O Estrangeiro e A Peste, romances complementares quanto ao significado, são dois momentos capitais na obra de Camus.
Se O Estrangeiro termina em pleno absurdo, A Peste conclui com a lúcida aceitação do destino humano.
Pelo seu sentido humanista e por uma consumada arte literária, A Peste é considerada uma das mais puras obras-primas do nosso tempo.

Na manhã de um dia 16 de abril dos anos de 1940, o doutor Bernard Rieux sai do seu consultório e tropeça num rato morto. Este é o primeiro sinal de uma epidemia de peste que em breve toma conta de toda a cidade de Orão, na Argélia. Sujeita a quarentena, esta torna-se um território irrespirável e os seus habitantes são conduzidos até estados de sofrimento, de loucura, mas também de compaixão de proporções desmedidas.

Uma história arrebatadora sobre o horror, a sobrevivência e a resiliência do ser humano, A Peste é uma parábola de ressonância intemporal, um romance magistralmente construído, que, publicado originalmente em 1947, consagrou em definitivo Albert Camus como um dos autores fundamentais da literatura moderna.

A Peste é publicada em Portugal pela Editora Livros do Brasil. Os extractos abaixo transcritos pertencem a uma edição da década de 1960 (capa seguidamente reproduzida). O livro continua disponível na editora a um preço que ronda os 15 €.
Colecção Dois Mundos.
Páginas: 334.
LEITURA MUITO RECOMENDADA PELA TORRE.


“Os curiosos acontecimentos que servem de assunto a esta história produziram-se em 194…, em Orão. Segundo a opinião geral, não estavam aí no seu devido lugar, antes saíam um pouco do habitual.
À primeira vista, Orão é, com efeito, uma cidade vulgar, que não passa de uma prefeitura francesa na costa argelina.
A própria cidade, confessemo-lo, é feia. Com o seu aspecto calmo, é preciso algum tempo para se perceber o que a torna diferente de tantas outras cidades comerciais em todas as latitudes. Como imaginar, por exemplo, uma cidade sem pombas, sem árvores e sem jardins, onde não se sente o bater de asas nem o sussurro de folhas, uma cidade neutra, para dizer tudo? Apenas no céu se lê a mudança das estações.

A Primavera só se anuncia pela qualidade do ar ou pelos cestos de flores trazidos por rapazitos dos arredores: é uma Primavera que se vende nos mercados. Durante o Verão, o sol incendeia as casas demasiado secas e cobre as paredes de uma poeira cinzenta; então só é possível viver à sombra das persianas corridas. No Outono, pelo contrário, é um dilúvio de lama.
Os dias bonitos só vêm no Inverno. (…)




Na manhã do dia 16 de Abril, o doutor Bernard Rieux saiu do seu consultório e tropeçou num rato morto, no meio do patamar. Nesse momento, afastou o bicho sem lhe prestar atenção e desceu a escada. Chegado à rua, porém, veio-lhe a ideia de que esse rato não estava no seu lugar e voltou atrás para prevenir o porteiro.

Perante a reacção do velho Michel, sentiu melhor o que a sua descoberta tinha de insólito. A presença desse rato parecera-lhe apenas estranha, enquanto que para o porteiro ela constituía um escândalo. A posição deste último era, aliás, categórica: não havia ratos em casa. Por mais que o médico lhe afirmasse que havia um no patamar do primeiro andar e, provavelmente, morto, a convicção de Michel permanecia íntegra. Não havia ratos na casa, e era, pois, provável que tivessem trazido aquele de fora. Em resumo, tratava-se de uma partida.

Nessa mesma noite, Bernard Rieux, de pé no corredor do edifício, procurava as chaves antes de subir para sua casa, quando viu surgir do fundo obscuro do corredor um rato enorme, de passo incerto e pelo molhado.
O animal parou, pareceu procurar o equilíbrio, correu em direcção ao médico, parou de novo, deu uma volta sobre si mesmo com um pequeno guincho e parou, por fim, deitando sangue pela boca entreaberta. O médico contemplou-o um momento e subiu. (…)


No dia seguinte, 17 de Abril, às oito horas, o porteiro deteve o médico e acusou três brincalhões de mau gosto de haverem posto três ratos mortos no meio do corredor. Deviam tê-los apanhado com grandes ratoeiras, pois estavam cheios de sangue. O porteiro ficara algum tempo à porta, segurando os ratos pelas patas, esperando que os culpados se traíssem por algum sarcasmo. Mas nada acontecera.
- Ah – dizia Michel -, hei-de acabar por apanhá-los.

Intrigado, Rieux decidiu começar a sua volta pelos bairros exteriores, onde habitavam os mais pobres dos seus clientes. A recolha do lixo fazia-se aí muito mais tarde e o automóvel, rolando ao longo das ruas direitas e poeirentas, roçava os caixotes do lixo deixados à beira dos passeios. Numa rua que percorria assim, o médico contou uma dúzia de ratos lançados sobre restos de legumes e trapos sujos. (…)




Em todo o caso, foi mais ou menos por esta época que os nossos concidadãos começaram a inquietar-se, pois a partir do dia 18 as fábricas e os depósitos apareceram enxameados de centenas de cadáveres de ratos.
Em alguns casos foi necessário acabar de matar os bichos, cuja agonia era demasiado longa. Mas desde os bairros exteriores até ao centro da cidade, por toda a parte onde o doutor Rieux passava, por toda a parte onde os nossos concidadãos se reuniam, os ratos esperavam em montes, nos caixotes do lixo ou junto às sarjetas, em longas filas.

A imprensa da tarde ocupou-se do assunto a partir desse dia e perguntou se a municipalidade se propunha ou não agir e que medidas de urgência tencionava adoptar para proteger os seus munícipes dessa repugnante invasão.
A municipalidade não se tinha proposto coisa nenhuma, mas começou por reunir em conselho para deliberar.

Foi dada ordem ao serviço de luta contra os ratos para proceder à sua recolha todas as manhãs, ao romper da alva. Acabada a recolha, dois carros de serviço deviam conduzir os animais ao posto de incineração dos lixos a fim de serem queimados.




Porém, nos dias que se seguiram a situação agravou-se.
O número de roedores apanhados ia crescendo e a recolha era cada manhã mais abundante. A partir do quarto dia, os ratos começaram a sair para morrerem em grupos. Das arrecadações, das caves, dos esgotos, subiam em longas filas titubeantes, para virem vacilar à luz, girar sobre si mesmos e morrer perto dos seres humanos.

À noite, nos corredores ou nas ruelas, ouviam-se distintamente os seus guinchos de agonia. De manhã, nas ruas, encontravam-se junto aos passeios, com uma pequena flor de sangue no focinho pontiagudo, uns inchados e pútridos, outros rígidos e com os bigodes ainda hirtos.

Na própria cidade, encontravam-se em pequenos montes, nos patamares e nos pátios. Vinham também morrer isoladamente nos vestíbulos administrativos, nos recreios das escolas, por vezes nos terraços dos cafés. Os nossos concidadãos, estupefactos, encontravam-nos nos locais mais frequentados da cidade. A Praça de Armas, as avenidas, o Passeio do Front-de-Mer apareciam conspurcados de longe a longe.

Expurgada, ao amanhecer, dos animais mortos, a cidade voltava a encontrá-los pouco a pouco, cada vez mais numerosos, durante o dia. Dir-se-ia que a própria terra onde estavam plantadas as nossas casas se purgava dos seus humores, que deixava subir à superfície furúnculos e podridões que, até aqui, a minavam interiormente. (…)




As coisas foram tão longe que a Agência Ransdoc – todas as informações sobre qualquer assunto – anunciou, na sua emissão radiofónica de informações gratuitas, seis mil duzentos e trinta e um ratos apanhados e queimados, só no dia 25.

Este número, que dava um sentido claro ao espectáculo quotidiano que a cidade tinha perante os seus olhos, aumentou a agitação. Até então, as pessoas tinham-se apenas queixado de um espectáculo um pouco repugnante.
Compreendia-se agora que este fenómeno, de que não se podia avaliar a amplitude nem precisar a origem, tinha qualquer coisa de ameaçador.
Só o velho espanhol asmático continuava a esfregar as mãos e a repetir com uma alegria senil: Eles saem, eles saem.”




Albert Camus nasceu na Argélia, em Mondovi, província de Constantina, a 7 de Novembro de 1913, e morreu num acidente de automóvel em Janeiro de 1960, ao regressar a Paris de uma pequena digressão pela província.

Foram difíceis as condições em que Albert Camus efectuou os seus estudos na Universidade de Argel. Foi obrigado a recorrer a diversos empregos para custear as despesas da vida de estudante: vendedor de acessórios de automóvel, meteorologista, empregado num escritório, manga-de-alpaca na Prefeitura da Polícia. Ao mesmo tempo entregava-se aos desportos e animava um grupo teatral, L’Équipe.

Licenciado em Filosofia, a doença impediu-o de levar mais longe a carreira de professor. Entrou para o jornalismo. Com a invasão da França ingressou na Resistência, e a Libertação encontrou-o redactor do jornal Combat.
O seu nome subira entretanto ao primeiro plano das Letras francesas e mundiais. Em 1957 sobreveio a consagração do Prémio Nobel da Literatura.

A sua obra é uma das mais influentes nas gerações do pós-guerra, tanto pelo valor humanístico da sua crítica dos homens e da vida, como pelo brilho, pureza e sobriedade do seu estilo.
Ancorada rijamente ao nosso tempo, está pois destinada a ultrapassar os limites da época que a viu nascer.

segunda-feira, 20 de maio de 2019

Abandonos (3)

 
 
 
 
 
 
 
 
 











































 
 
 
 
 
 
 
 










 
 
 
 
 
 
 
 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

sábado, 18 de maio de 2019

Águia voou altíssimo em Portugal: Benfica de novo campeão de futebol!


5.º título conquistado nos últimos 6 anos por aquele que é, de longe, o maior e o mais famoso clube português.
Sem dúvida o melhor futebol praticado durante a época, com vitórias convincentes sobre os principais rivais...
Um avassalador futebol de ataque, uma máquina de fazer golos (103 apontados em pouco mais de 30 jornadas)...


… tudo levado a cabo por uma equipa constituída em grande parte por jovens talentosos, maioritariamente formados pelo clube na sua renomada academia de futebol do Seixal, a dois passos de Lisboa:
Gedson Fernandes, Jota, João Félix, Ferro, Rúben Dias, Florentino Luís, Svilar, Yuri Ribeiro - a par de veteranos ou menos veteranos de créditos há muito firmados: Jonas, Samaris, Rafa, Pizzi, Cervi, Gabriel, Zivkovic, André Almeida, Grimaldo, Conti, Fejsa, Seferovic, Salvio, Vlachodimos, Jardel, etc. 


Treinador português Bruno Lage, 43 anos, verdadeiro achado do presidente Luís Filipe Vieira.
Quando pegou na equipa, a meio da época futebolística, o Benfica ocupava o 4.º posto e estava a 7 pontos do então 1.º classificado.
Operou uma espécie de milagre e terminou folgada e merecidamente campeão.
Competente, sério e respeitador dos adversários, conquistou os jogadores, reconquistou os adeptos, fez produzir um futebol criativo e empolgante - e está obviamente fadado para uma grande carreira.

E assim entra o Benfica, directamente, na Liga dos Campeões Europeus a disputar no próximo ano futebolístico (2019-2020).


Resumo do último jogo do campeonato, disputado no Estádio da Luz, Lisboa:
BENFICA - 4  -  SANTA CLARA - 1 -



Hino do campeão:

terça-feira, 14 de maio de 2019

A Conjuração Mineira, no Brasil (1789-1792) - A Execução de "Tiradentes"


Vila Rica (futura Ouro Preto, no estado de Minas Gerais)

A Conjuração Mineira (também conhecida como Inconfidência Mineira) foi uma conspiração de natureza separatista em relação a Portugal.
Ocorreu em 1789, na capitania de Minas Gerais, Brasil, colónia portuguesa desde o começo do século XVI.
Os principais acontecimentos deram-se na povoação de Vila Rica (actual Ouro Preto), que tinha crescido enormemente, na primeira metade do século XVIII, sob o impulso da extracção do ouro.

Descobertas no último decénio do século anterior, as minas tinham-se transformado, aos olhos das autoridades portuguesas, na "pérola preciosa do Brasil", alimentando, com o seu ouro, os gastos fabulosos do reinado de D. João V.
Serviam também, em grande parte, para ir pagando à sôfrega Inglaterra a imensa dívida contraída por Portugal na sequência de opções políticas e económicas ruinosas. Vendia-se vinho e descurava-se a indústria nacional, porque, na opinião de muitos, o ouro brasileiro era praticamente inesgotável.

Pesquisa de ouro

A produção excedia todas as expectativas.
Extraía-se ouro no leito dos ribeiros, desviando-lhes a corrente; ou das margens, escavando os aluviões, e, quando estes se achavam em nível superior, as encostas.
No cascalho, submetido a lavagem, o ouro "pintava", ou "faiscava" nas bateias (vasos de madeira, com fundo cónico, onde o metal precioso se depositava).
Mais tarde, esgotados os aluviões, atacava-se a rocha e construía-se a mina, propriamente dita.
O historiador Oliveira Martins descreve, com singular crueza, as consequências de tudo isto em Portugal:

"Despovoado e inculto o reino, miseráveis e nuas as povoações, sem riqueza nem trabalho - as minas de ouro do Brasil deram ao rei e ao povo uma fortuna que o país lhes negava. Lisboa era mais a metrópole de um vasto império ultramarino do que a capital de um reino europeu.
Foi sobre o ouro e os diamantes do Brasil que se ergueu o trono absoluto de D. Pedro II (reinou de 1683 a 1706); foi com eles que D. João V (1706-1750), e todo o reino, puderam entregar-se ao entusiasmo desvairado em que desperdiçaram os tesouros americanos. D. João V corrompeu e gastou, pervertendo-se também a si e desbaratando toda a riqueza da nação.
O Inglês sentava-se com ele à mesa e aplaudia os desperdícios, porque todo o ouro do Brasil apenas passava por Portugal, indo fundear em Inglaterra para pagamento da farinha e dos géneros fabris com que ela nos alimentava e nos vestia".

As coisas não mudariam muito, quanto ao essencial, durante os reinados seguintes: o de D. José (1750-1777); e o de D. Maria I (1777-1816). Foi justamente no tempo desta última que ocorreu a Conjuração Mineira.

Barras de ouro "quintado", após passagem pela Casa de Fundição

No Brasil de então, tudo ou quase tudo quanto era produzido sofria tributação pesada. Como afirma Luís Valentin Vallejo num bem documentado e interessantíssimo livro [A Revolta de Papel], "antes de completar 100 anos, a fúria arrecadadora de impostos da coroa portuguesa já dominava o Brasil (...). A principal tarefa dos Governadores, à época, era arrecadar. Tanto é que, quando a arrecadação desses impostos não era mais satisfatória, apelavam para outros artifícios, como instituir o monopólio legal e total da economia (...)."

O ouro passou por diversas formas de tributação. A mais conhecida, que aliás se estendia a uma infinidade de produtos, era a dos "quintos".

O chamado "Quinto Real" consistia na cobrança, em benefício da Coroa Portuguesa, de um quinto (ou 20%) do ouro extraído.

O ouro produzido na capitania de Minas Gerais convergia para as Casas de Fundição, onde era fundido e "quintado" - isto é, sujeito à retirada da quinta parte devida como imposto. Era depois transformado em barras de tamanho e peso variáveis - marcadas com o selo real - que seguiam para os seus proprietários.

Nos primeiros tempos, as coisas correram a contento do poder colonial. Mas, após a euforia da "corrida ao ouro", com os aluviões e as minas submetidas a sobreprodução, a quantidade de ouro começou a decrescer. Para Lisboa, no entanto, a capacidade das minas era infinita, pelo que atribuiu tal decréscimo ao descaminho da produção, ao contrabando ou ao roubo puro e simples.


Outro aspecto de Vila Rica

Fixou-se então uma quota mínima a ser paga em cada ano: 100 arrobas de ouro (cerca de 1500 kg). Caso este valor não fosse alcançado, a Coroa lançaria a temida "derrama".
O que era a "derrama"?
Tratava-se de uma contribuição colectiva, distribuída por todos os moradores da capitania (quer fossem ou não mineradores), a qual pagaria a diferença e cobriria o "prejuízo" da Coroa.
Deste modo, por exemplo, se em determinado ano a tributação recolhida atingisse apenas 65 arrobas, a comunidade inteira pagaria, com a "derrama", as 35 em falta.

Verificou-se ao longo de vários anos o incumprimento da quota, tendo sido executada uma "derrama", a meio da década de 1760, para cobrir um défice de 13 arrobas de ouro. Mas em 1789, o ano da Conjura, devido ao contínuo decréscimo da produção aurífera, o atraso nos pagamentos ultrapassava largamente as 500 arrobas de ouro.
Correram rumores, alarmantes para todo o povo, de que a Coroa, visando a recuperação fiscal, se preparava para lançar uma vez mais a fatal "derrama". O novo governador da capitania de Minas Gerais, visconde de Barbacena, chegado em 1788, traria instruções nesse sentido.

Então, um grupo de moradores proeminentes de Vila Rica ter-se-á reunido em diversas ocasiões, a partir dos finais desse ano, para debater o assunto. Provavelmente inspirados pela recente libertação das colónias inglesas da América do Norte (1776), eles evoluíram rapidamente para a ideia de uma conjura separatista de Minas Gerais (não do Brasil inteiro) em relação a Portugal.
No projecto em causa (que nunca chegou a passar das ideias e das palavras) o levantamento armado coincidiria com a data em que fosse lançada a "derrama" dos quintos atrasados. 

Reunião de líderes da Conjuração Mineira

Participaram no movimento, com maior ou menor responsabilidade, diversas figuras importantes da sociedade de Minas - intelectuais, militares, fazendeiros, criadores de gado, comerciantes, exploradores de minas, contratadores, magistrados e até clérigos (os "padres ricos").
Algumas destas figuras eram verdadeiros magnates, sendo importante fixar que muitos tinham dívidas elevadíssimas para com a Fazenda Real ou haviam sido afastados de lugares importantes da administração pelo governador que antecedeu o visconde de Barbacena. Uma execução fiscal rigorosa poderia significar, para eles, a ruína.

Mencionem-se, não exaustivamente, alguns dos participantes:

José Álvares Maciel (diplomado em Filosofia); Francisco de Paula Freire de Andrade (tenente-coronel do Regimento de Dragões); Joaquim Silvério dos Reis (coronel de um dos Regimentos de Cavalaria Auxiliar); Tomás António Gonzaga (magistrado e famoso poeta); Cláudio Manuel da Costa (advogado, fazendeiro, com interesses nas minas); Inácio de Alvarenga Peixoto (coronel da Cavalaria Auxiliar, criador de gado, proprietário de extensas explorações mineiras, plantações de cana-de-açúcar e engenhos); alguns clérigos radicais, como Carlos Correia de Toledo (fazendeiro e com interesses nas minas), José da Silva Oliveira Rolim e Luís Vieira da Silva (cónego de Mariana); contratadores e comerciantes, como João Rodrigues de Macedo e Domingos de Abreu Vieira; e alguns oficiais de patentes menores, como o alferes da Companhia de Dragões Joaquim José da Silva Xavier (alcunhado Tiradentes por suas habilidades de dentista).
O alferes Xavier contava 43 anos de idade em finais de 1789.


Um dos possíveis projectos de bandeira dos conjurados.
Inspirador da bandeira actual do Estado brasileiro de Minas Gerais.


Para o historiador Varnhagen, as reuniões dos conjurados foram pouco mais do que inócuas. Tudo "não passou de conversação hipotética: não houve decididas resoluções a que se devesse começar a dar cumprimento. Nem sequer se assentou em quem deveria ser o chefe".

No entanto, a independência de Minas Gerais foi inequivocamente contemplada e debatida. Quanto à forma de governo a ser adoptada, as opiniões dividiam-se: uns queriam a República, outros a Monarquia. Houve quem defendesse a abolição da escravatura, contra a oposição de outros. Verificou-se maior concordância em assuntos puramente regionais, como a mudança da sede da capitania de Minas Gerais (para São João d'El-Rei); ou como a criação de uma Universidade em Vila Rica.

Conceberam-se, ainda, projectos de bandeira para Minas. De um deles constava um triângulo (cuja cor se desconhece) e uma inscrição em latim: Libertas quae sera tamen ("Liberdade, ainda que tardia"). Noutro projecto desenhou-se um índio destruindo as cadeias da opressão.
Embora sem unanimidade, previa-se a liquidação física do visconde de Barbacena no início do levantamento.

Analisando com frieza, conclui-se que se tratava de um movimento votado ao fracasso. Não havia previsão de logística adequada nem tropas garantidas. O apoio popular era duvidoso. Verificaram-se descuidos fatais quanto ao segredo das acções. Esfumaram-se também as esperanças iniciais de apoio externo (com o falhanço das tentativas de captação dos Estados Unidos para a causa do movimento).
Agravando  as coisas, tudo se desenrolava numa região interior, desprovida de acessos marítimos e, portanto, fácil de cercar e subjugar por eventuais forças hostis.

Deste modo, quando o visconde de Barbacena recebeu a primeira delação (de Joaquim Silvério dos Reis, que não foi, contudo, o único a denunciar o que se passava), as autoridades puderam pôr-se em campo sem que os conjurados tivessem hipóteses de reagir. A derrama foi suspensa, para aquietar as gentes de Minas. E, em tempo oportuno, já em Maio de 1789, foram efectuadas as prisões dos implicados, sendo aberta uma Devassa (isto é, um processo de investigação criminal da conjura).

NOTA - É aconselhável a leitura dos autos da Devassa. Graças a louvável iniciativa da Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, que os reuniu em 11 volumes, podemos consultá-los em: Autos de Devassa da Inconfidência Mineira
Pista: os interrogatórios (ou "inquirições") do alferes Silva Xavier (Tiradentes) - constam do volume 5.
Prisão de conjurados

Provavelmente, nem todos os implicados se achariam de alma e coração com o movimento.
Alguns teriam agido por idealismo, combinado com certa ingenuidade, como o alferes Silva Xavier (Tiradentes). Mas outros, sobretudo os mais poderosos social e economicamente - e mais endividados perante a Coroa -, permaneceram quase todo o tempo na sombra, alimentando a expectativa de que o tumulto que anteviam pudesse servir para defenderem os seus interesses pessoais.
Assim sucedera com outros magnates, também em Vila Rica, numa revolta anterior (ano de 1720): no final da mesma verificaram-se perdões - de vidas e de dívidas à Coroa - e Felipe dos Santos, uma figura relativamente menor, pagou por todos na forca.

[Aliás, saliente-se que a mais forte motivação do primeiro delator de 1789 (Silvério dos Reis) terá residido na esperança de que lhe poupassem a vida e lhe perdoassem a enorme dívida para com a Coroa. Conseguiria as duas coisas.]

Na Conjuração Mineira, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, esteve longe de ser, ainda que muito activo no terreno a partir de certa altura, figura determinante ou principal. Ele não possuía relevância social, não podia equiparar-se culturalmente à maior parte dos principais conjurados e não detinha fortuna pessoal. Era, claramente, a parte mais fraca da corda. Durante os primeiros tempos nem sequer teve acesso às reuniões dos conjurados, sendo elucidativo o que o historiador Kenneth Maxwell escreveu a respeito na sua obra A Devassa da Devassa:

“Na verdade, o alferes provavelmente nunca esteve plenamente a par dos planos e objetivos mais amplos do movimento: seus interrogatórios mostram que suas preocupações pareciam limitadas às táticas imediatas e à divulgação de ideias lusófobas. Inconfidentes importantes haviam evitado, cuidadosamente, relacionar-se com ele. Tanto Gonzaga quanto Rodrigues de Macedo tinham repelido suas tentativas de lhes falar e Cláudio Manuel da Costa tentara fazer o mesmo."

Alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes

Face ao ostracismo a que Tiradentes foi votado durante largo tempo pelos principais conspiradores, alguma historiografia tem procurado diminuir o seu papel nos acontecimentos, fazendo simultaneamente sobressair os evidentes defeitos da sua personalidade e os desequilíbrios do seu comportamento.
Não há dúvida de que ele se revelou frequentemente descuidado. Falava de mais, e sem precauções, com qualquer interlocutor, acerca das ideias revolucionárias em curso. E possuía grande tendência para a fanfarronice, gabando-se amiúde de que, se todos fossem como ele, as coisas mudariam de vez em Minas Gerais.

Também não é verdade que ele tenha assumido, logo após a prisão, a responsabilidade integral da conjura ou a empenhada difusão das ideias revolucionárias (que comprovadamente tinha levado a cabo).
Pelo contrário, nos três primeiros interrogatórios a que foi sujeito, ele procurou desesperadamente eximir-se de responsabilidades. Não fizera nada, não sabia de nada, desconhecia qualquer movimento conspirativo - e até se manifestou jocoso quanto a isso: "seria preciso estar bêbado ou doido" para se meter nessas coisas.

E quando lhe perguntaram se não havia falado em atacar o próprio vice-rei no seu palácio, respondeu que só o poderia ter feito "por simples jactância, uma grande bazófia, pois pretendia me gabar; mas jamais me passou pela cabeça intentar tal coisa".
Diminuindo-se enfim perante os juízes, fez ressaltar a insignificância da sua figura, afirmando-se "um simples alferes, sem títulos, sem valimentos, sem riqueza, totalmente sem condições para poder persuadir tão grande quantidade de pessoas a fazer semelhante asneira".


Prisão de Tiradentes na Rua dos Latoeiros (actual Gonçalves Dias) - Rio de Janeiro

Só no quarto interrogatório, já em Janeiro de 1790, Tiradentes alterou o discurso. Mas deverá notar-se que o interrogatório anterior havia ocorrido sete meses antes. Durante esse espaço de tempo ele tinha permanecido acorrentado numa masmorra infecta, isolado e praticamente incomunicável, a não ser quando os confessores o visitavam para o pressionar, pedindo-lhe que confessasse tudo para salvar a alma.
Até Alvarenga, um dos implicados (que foi também delator), o visitou, aconselhando-lhe a confissão.

Então, finalmente, Tiradentes quebrou.
"Alquebrado, esquelético, desnutrido, piolhento, passando privações físicas e psicológicas, totalmente dominado pelos frades confessores, em 18 de Janeiro de 1790 (…) confessa tudo, da maneira que os frades o convenceram a contar" (Valentin Vallejo).
Confrontado com testemunhos e acareações irrefutáveis, denunciado e traído por diversos companheiros, influenciado pelos religiosos e por pretensos "defensores" (mais interessados em inocentar outros e mais poderosos implicados), passou repentinamente a assumir o que tinha e o que não tinha feito.

Aceitou, portanto, ter tido responsabilidades e encargos de liderança que nem em sonhos lhe couberam. Não só não possuía capacidade para isso, como estava longe de reunir o necessário ascendente sobre os restantes conspiradores (além da superioridade intelectual e de posição social, alguns destes eram seus superiores hierárquicos).
Os interrogatórios seguintes (o sexto só teve lugar em Abril de 1791!) apenas serviram para completar o ramalhete. Na sua masmorra, acorrentado, sujo, animicamente destruído, Tiradentes era já só um farrapo. Um cadáver adiado...

É possível, como defendem alguns, que ele se tenha mantido, até ao fim, na esperança de que os seus poderosos mentores o conseguissem salvar. Mas o mais certo é que estes se tivessem por sua vez convencido de que só o sacrifício de Tiradentes os poderia salvar a eles. E por isso o terão deixado cair...
Como bem observou Kenneth Maxwell na obra citada:

"Significativamente, o alferes já tinha sido sacrificado por seus companheiros Inconfidentes: em toda a confusão de seus depoimentos, nenhum negara a participação de Tiradentes, ou o que diziam ser o seu entusiasmo fanático e às vezes imprudente pela revolução.
Embora muitos procurassem amenizar a importância dos atos dos companheiros, nenhuma preocupação de tal ordem manifestou-se nos comentários sobre o alferes."
 

Tiradentes diante do seu carrasco, o negro Capitania

Em 18 de Abril de 1792 (!), ocorreu finalmente o lance decisivo desta comédia trágica - a leitura das sentenças -, que o historiador Hélio Vianna relata assim:

"Foram condenados à morte, na forca, o Tiradentes, o tenente-coronel Freire de Andrade, José Álvares Maciel, Alvarenga Peixoto, Abreu Vieira, Francisco António de Oliveira Lopes, Luís Vaz de Toledo Piza, os dois Resende Costa (pai e filho), Amaral Gurgel e Vidal de Barbosa - onze ao todo. A degredo perpétuo na África foram condenados sete réus (…) a degredo temporário um. Outros, foram absolvidos. Permaneceu em segredo a sentença dos eclesiásticos."

Porém, a 20 de Abril, novo passe de comédia - a sentença foi reformada! E foi desse modo que os condenados à morte viram a terrível pena comutada, substituindo-se a subida ao cadafalso por penas de degredo em África...

Mas houve uma excepção, provavelmente há muito congeminada: de acordo com a primeira versão da sentença, o alferes Silva Xavier, Tiradentes, seria o único a morrer na forca, no dia seguinte, e o seu cadáver sofreria esquartejamento.

Entretanto, outro dos implicados, Cláudio Manuel da Costa, optara por suicidar-se na prisão (embora corressem rumores de que fora assassinado).


Tiradentes no cadafalso
(Na realidade, e como era costume, teria a barba e o cabelo rapados)

Damasceno Vieira descreveu da seguinte forma, nas suas Memórias Históricas Brasileiras (1903), a execução de Silva Xavier (texto adaptado e reordenado pela Torre):

"A execução de Tiradentes assumiu as proporções de uma grande festa pública.
Ao alegre som das bandas musicais, os batalhões e regimentos que guarneciam o Rio de Janeiro foram postar-se no largo da barreira de Santo António, chamado também Campo da Lampadosa, e aí colocaram-se de modo a formar triângulo, dentro do qual se erguia a forca de grossos paus e elevada altura.
Toda a oficialidade trajava uniforme de gala.
Reluziam ao sol ardente do dia 21 de Abril de 1792 os ricos arreios de prata das garbosas cavalgaduras das principais autoridades.

Pouco depois das 11 horas entrou na praça a procissão que acompanhava o réu e era composta dos ministros da justiça, irmãos da Santa Casa de Misericórdia, clero e religiosos franciscanos.
Revestido de alva, com o baraço ao pescoço, caminhava Tiradentes, segurando um crucifixo que mantinha na altura dos lábios. Era o único a pagar com a vida o crime de ter sonhado a liberdade para a sua pátria, oprimida e degradada pela aviltante escravidão, pela tenebrosa ignorância, pelo embrutecedor despotismo.

Subiu a escada do patíbulo e pediu ao carrasco, o negro Capitania, que lhe abreviasse a execução. Do meio da escada, falou ao povo o guardião do convento de Santo António. Finda a ligeira prédica, e quando o mesmo guardião rezava o credo em alta voz, foi arrojado ao ar o Tiradentes, ficando dependurado pelo pescoço. Pela corda desceu o carrasco, firmando as coxas sobre os ombros do condenado para apressar-lhe a morte.
Estava concluída a execução, desafrontada a lei.

Dissolveu-se a multidão que enchia o campo.
Ao som de músicas estridentes, voltaram aos seus quartéis os regimentos e batalhões.
Como expressiva demonstração de regozijo, ordenou a Câmara que os habitantes pusessem luminárias nos dias 21, 22 e 23 de Abril, considerados de festa, por se ter a monarquia desagravado de modo tão brilhante, e determinou a celebração de uma ação de graças na igreja dos Terceiros Carmelitas. A essa imponente solenidade assistiram todas as autoridades e as principais famílias.

Depois de enforcado, foi o corpo de Tiradentes esquartejado, salgado e remetido para Minas Gerais, onde se expôs a sua cabeça na praça pública de Vila Rica, sendo seus membros espalhados pelos caminhos para terrível escarmento dos povos.
O glorioso patriota contava 45 anos de idade."

Outra ilustração da execução de Tiradentes

Comentário da Torre da História Ibérica

Tiradentes - herói ou mito?

Para os Brasileiros, pelo menos desde a implantação da República (1889), não existem dúvidas: celebram o alferes como um precursor da libertação do jugo colonial. E, a cada 21 de Abril, dia feriado no País, prestam-lhe homenagem como seu herói nacional.
Assim, não há historiografia nem teses que o possam retirar do pedestal em que foi colocado pelos compatriotas. Nem existem realmente razões para que procedessem de outro modo.

Com todos os seus defeitos e procedimentos desajustados, a impressão que fica é que Silva Xavier emerge, no grupo de conjurados, como o único que verdadeiramente acreditava (quase de certeza ingenuamente) na possibilidade de levar por diante o projecto revolucionário.
Ele foi, sem dúvida, o que mais se expôs - ou aquele que, sem talvez dar por isso, se foi deixando expor, usado como instrumento útil pelos que não queriam correr o risco de aparecer à luz do dia.
É ele que difunde as ideias, que prega imprudentemente a revolta, que procura armas incertas, que mente quando acha que é preciso mentir, que inventa apoios duvidosos e solidariedades fictícias para atrair simpatizantes, que perigosamente se vai deixando arrastar, dia após dia, para a luz dos holofotes. Um cordeiro à beira da imolação.

Quando, na prisão, procurou de início negar tudo, limitou-se a imitar os companheiros, seguindo talvez instruções da defesa. Mas no momento em que finalmente cedeu, houve uma coisa que ele não fez: tentar salvar-se lançando culpas para os outros. Mesmo quando acareado com os companheiros, ainda quando empurrado para o cadafalso pelos seus depoimentos e denúncias, escusou-se sempre a proceder dessa forma.
Caminhou para o fim medonho e inevitável carregando as suas falhas e as suas culpas - mas carregando também, injustamente, solitariamente, as culpas e as cobardias alheias.

Desse modo, com todas as suas inabilidades, insuficiências e ingenuidades, Tiradentes, sem mesmo ter consciência disso, abandonou o estado de potencial revolucionário ("revolucionário" que, em realidade, nunca foi) para ascender a outras e superiores condições: a de mártir e a de símbolo, humilde, e por isso mais autêntico, de rebeldia e de liberdade.
Era, de facto, o elo mais fraco da cadeia conspiratória. E foi por ali que a cadeia se quebrou.
No exemplo de justiça cruel que o poder colonial precisava de encenar, a sua morte afigurava-se o caminho mais óbvio e mais fácil. E foi o caminho seguido, criando o desejado bode expiatório.

Era figura carregada de defeitos e de fraquezas?
Sem dúvida que sim. Mas não existem heróis "puros". Os heróis são humanos, e, como tal, palmilham os seus caminhos espinhosos por entre luzes e sombras.

Assim foi Tiradentes.
E, por ser assim, ele fica muito bem, para todo o sempre, no panteão de heróis nacionais em que os Brasileiros o quiseram justamente colocar.