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"Era na Primavera de 1506 (...).
Desde Janeiro que a peste redobrava de intensidade em Lisboa, e nos princípios de Abril era tal o progresso da epidemia que a mortalidade subia em alguns dias ao número de cento e trinta indivíduos.
Faziam-se preces públicas, e a 15 do mês ordenou-se uma procissão de penitência, que, saindo da igreja de S. Estêvão, se recolheu na de S. Domingos, seguindo-se a celebração de preces solenes. Durante elas, o povo implorava em gritos a misericórdia divina.
No altar da capela chamada de Jesus havia naquele tempo um crucifixo, e no lado da imagem do Salvador um pequeno receptáculo, que servia de custódia a uma hóstia consagrada.
No excesso da exaltação religiosa houve quem cresse ver aí, e talvez visse, uma luz estranha.
Espalhou-se logo a voz de milagre.
Ou que os dominicanos, aproveitando a ilusão, realizassem artificialmente a suposta maravilha, ou que a credulidade, fortalecida pelos terrores da peste, predispusesse cada vez mais a imaginação do vulgo para ver aquele singular clarão, é certo que ainda nos dias seguintes havia quem afirmasse divisá-lo perfeitamente.
Todavia, o voto mais comum era que essa maravilha não passava de uma fraude, e ainda muitos dos mais crentes suspeitavam que o facto existira nas imaginações escandecidas.
Durante quatro dias a crença no prodígio foi ganhando vigor.
No domingo seguinte, ao meio-dia, celebrados os ofícios divinos, examinava o povo a suposta maravilha, contra cuja autenticidade recresciam suspeitas no espírito de muitos dos espectadores.
Achava-se entre estes um cristão-novo, ao qual escaparam da boca manifestações imprudentes de incredulidade acerca do milagre.
A indignação dos crentes, excitada provavelmente pelos autores da burla, comunicou-se à multidão.
O miserável blasfemo foi arrastado para o adro, assassinado, e queimado o seu cadáver.
O tumulto atraíra maior concurso de povo, cujo fanatismo um frade excitava com violentas declamações. Dois outros frades, um com uma cruz, outro com um crucifixo arvorado, saíram então do mosteiro, bradando heresia, heresia!
O rugido do tigre popular não tardou a reboar por toda a cidade.
As marinhagens de muitos navios estrangeiros fundeados no rio vieram em breve associar-se à plebe amotinada.
Seguiu-se um longo drama de agonia..
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Os cristãos-novos que giravam pelas ruas desprevenidos eram mortos ou malferidos e arrastados, às vezes semivivos, para as fogueiras que rapidamente se tinham armado, tanto no Rossio como nas ribeiras do Tejo.
O juiz do crime, que com os seus oficiais pretendera conter o motim, apedrejado e perseguido, teria sido queimado com a própria habitação se um raio de piedade não houvera momentaneamente tocado o coração do tropel furioso que o perseguia, ao verem as lágrimas da sua esposa, que, desgrenhada, implorava piedade.
Os dois frades enfureciam as turbas com os seus brados e guiavam-nas com actividade infernal naquele tremendo labor.
O grito da revolta era: Queimai-os! Quantos cristãos-novos encontravam arrastavam-nos pelas ruas e iam lançá-los nas fogueiras da Ribeira e do Rossio. Nesta praça foram queimadas nessa tarde trezentas pessoas, e às vezes, num e noutro lugar, ardiam a um tempo grupos de quinze ou vinte indivíduos.
A ebriedade daquele bando de canibais não se desvaneceu com o repouso da noite.
Na segunda-feira as cenas da véspera repetiram-se com maior violência, e a crueldade da plebe, incitada pelos frades, revestiu-se de formas ainda mais hediondas.
Acima de quinhentas pessoas tinham perecido na véspera: neste dia passaram de mil.
Segundo o costume, ao fanatismo tinham vindo associar-se todas as ruins paixões, o ódio, a vingança cobarde, a calúnia, a luxúria, o roubo.
As inimizades profundas achavam no motim popular ensejo favorável para atrozes vinganças, e muitos cristãos-velhos foram levados às fogueiras com os neófitos judeus.
Alguns só obtinham salvar-se mostrando publicamente que não eram circuncidados.
As casas dos cristãos-novos foram acometidas e entradas. Metiam a ferro homens, mulheres e velhos: as crianças arrancavam-nas dos peitos das mães e, pegando-lhes pelos pés, esmagavam-lhes o crânio nas paredes dos aposentos.
Depois saqueavam tudo.
Aqui e acolá, viam-se nas ruas alagadas de sangue pilhas de quarenta e cinquenta cadáveres que esperavam a sua vez nas fogueiras.
Os templos e os altares não serviam de refúgio aos que tinham ido acoitar-se à sombra deles e abraçar-se com os sacrários e as imagens dos santos.
Donzelas e mulheres casadas, expelidas do santuário, eram prostituídas e depois atiradas ás chamas.
Os oficiais públicos que por qualquer modo buscavam pôr diques a esta torrente de atrocidades e infâmias escapavam a custo, pela fuga, ao ímpeto irresistível das turbas concitadas; porque, além da gente dos navios estrangeiros, mais de mil homens da plebe andavam embebidos naquela carnificina.
A noite, que descia, veio, afinal, cobrir com o seu manto este espectáculo medonho, que se renovou no dia seguinte. Mas já as hecatombes eram menos frequentes, porque escasseavam as vítimas.
Os cristãos-velhos que ainda acreditavam em Deus e na humanidade tinham aproveitado o cansaço dos algozes para salvar grande número daqueles desgraçados, escondendo-os ou facilitando-lhes a fuga, inútil até certo ponto, porque ainda alguns deles foram assassinados nas aldeias circunvizinhas.
Até terça-feira à tarde o número dos mortos orçava por dois mil indivíduos.
À medida que faltavam alfaias que roubar, mulheres que prostituir, sangue que verter, a multidão serenava, e os filhos de S. Domingos, recolhendo-se ao seu antro, iam repousar das fadigas daquele dia.
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Evocação do massacre (Largo de S. Domingos, Lisboa, Portugal) |
Entretanto, o prior do Crato e o barão de Alvito partiam para Lisboa por ordem de el-rei [D. Manuel I], com largos poderes.
Convocando os juízes criminais, os dois comissários régios mandaram proceder a severas investigações.
Não tardou que fossem presos os mais notáveis entre os facinorosos.
Julgados sumariamente, foram logo enforcados de quarenta a cinquenta, sendo decepadas as mãos a alguns, e esquartejados outros.
Presos, também, os dois dominicanos que haviam capitaneado a plebe, levaram-nos a Setúbal, e dali a Évora, onde, privados das ordens, os condenaram a garrote e a serem queimados os seus cadáveres.
Os outros dominicanos de Lisboa foram expulsos do convento, que se entregou à administração de clérigos seculares, sendo inibidos ao mesmo tempo os frades de tornarem à capital, prova que tinham influído directa ou indirectamente no crime.
Uma carta de lei, expedida a 22 de Maio, condenou finalmente Lisboa a perder grande parte dos antigos privilégios, por causa da indiferença ou da cobardia com que os seus habitantes haviam tolerado os atentados da plebe. Os que intervieram de algum modo no motim, dando-lhe favor e ajuda, tiveram por pena o perdimento de todos os seus bens para o fisco, e à Casa dos Vinte e Quatro tirou-se a prerrogativa de intervir pelos seus representantes nas deliberações municipais.
Debalde a câmara enviou a el-rei um dos seus membros a pedir misericórdia para a capital.
D. Manuel I declarou-lhe que era necessário dar ao mundo aquele exemplo de rigor, por um lado contra tantas atrocidades dos maus, por outro lado contra tanta negligência dos que não o eram.
Assim, a lei de 22 de Maio foi dada à execução.
Porém, as manifestações da indignação do monarca afrouxaram passados cinco meses, e foi justamente naquela providência em que devera mostrar maior inflexibilidade que el-rei principiou a ceder.
Mandou-se restituir o Convento de S. Domingos, em Lisboa, à Ordem dos Pregadores, com a restrição de não voltarem a ele os frades que aí residiam na conjuntura do motim." (*)
(*) - Alexandre Herculano, História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, Livro VIII.