sábado, 9 de janeiro de 2010

O José das Caixinhas, ou "O Mano das Manas" (Luís Augusto Palmeirim - 1879)




Quem o não conheceu?
Magro, triste, escalavrado, com o chapéu enterrado pela cabeça abaixo, a sobrecasaca ferindo-lhe a espinha dorsal, e as botas como que convidando mais dois pés a alojarem-se junto dos outros dois.
O José das Caixinhas foi, durante muitos anos, o alegrão da garotada, o debique das compradoras folgazãs das caixinhas de papelão, sem serventia determinada.
Quem foi, ou quem era o José das Caixinhas?

(…) O José das Caixinhas era um estóico.
Levava resignadamente a vida, como um animal de carga as cangalhas que o sobrecarregam, sem perguntar porquê nem para onde.
Com um desbotado lenço da Índia atado pelas quatro pontas, e literalmente prenhe de caixas de papelão de várias cores e feitios, percorria o nosso homem a cidade, subindo aos quintos e sextos andares, justificando-se de inculcar à queima-roupa a sua indústria com o resmungar por entre dentes a sacramental desculpa:
É para as manas! Muita pobreza! Comprem, que é para as manas!”




Quem eram as manas?
Novo mistério! Tinham sido bonitas, esbeltas, provocadoras?
Ou tinham nascido e viviam agarradas à concha como a tartaruga, deitando apenas as mãos de fora para retalhar o papelão e ajeitá-lo em formas caprichosas, inventando-lhe depois aplicações também caprichosas?
Não sabemos. Eram as manas. Nesta fraternidade misteriosa se resumia todo o segredo comercial do José das Caixinhas.
Antigamente havia quem pedisse para as almas do purgatório, para os cativos de Argel, para os órfãos; como hoje se pede por anúncios para os asilos, para os albergues, para as creches, para os hospitais. (…)

Deste entranhado amor fraterno, sempre velho e sempre novo, veio ao José das Caixinhas o duplo cognome do “mano das manas”, que ele aceitava como galardão das estafas diárias que apanhava para vender por dois ou três patacos uma caixa de papelão amarelo, com recortes verde-salsa, ou uma almofadinha da cor das chamas infernais, debruada de azul celeste, aliança pouco engenhosa das duas cores simbólicas da bem-aventurança e da condenação eterna.

Para não enxovalhar estes primores artísticos saídos das mãos enrugadas mas limpas das manas, usava o José das Caixinhas luvas de pelica branca, a que sobravam quatro ou cinco centímetros no comprimento dos dedos, o que lhe embaraçava a agilidade precisa para desatar os nós do lenço, invólucro da mercadoria que o amor fraterno punha em circulação com tanto interesse como conhecimento de causa. (…)



Já no fim da vida de negociante de caixas de papelão parece que a saúde das manas não era também das mais florescentes; pelo menos, se lhe perguntavam por elas, a resposta sabida era: “Estão muito doentes; muito trabalho; alguma coisinha para as manas”.
Frases incompletas, significativas de que estava por pouco a indústria do papelão ajeitado em caixas com pretensões a enfeites de toucador, ou decoradas com o pomposo título de estojos, quando algumas polegadas de nastro pregadas nas tampas indicavam o local da tesoura, do furador e da agulheta.

Um belo dia desapareceu o José das Caixinhas!
Os jornais que escrevem os necrológios de todos os pais e de todos os maridos que se deixam morrer, esqueceram-se de registar o passamento deste exemplar dos bons irmãos.
O José das Caixinhas, que era um filósofo prático, que não incomodava a letra redonda mas lia no grande livro da natureza, não mereceu a mais leve comemoração dos seus confrades, nem uma dessas frases feitas com que os vivos enxovalham a memória dos mortos!
Pobre mano das manas! (*)

(*) - Luís Augusto Palmeirim – Galeria de Figuras Portuguesas – Lisboa – Portugal (1879)

L. A. Palmeirim nasceu e faleceu em Lisboa (1821-1893). Além de escritor, foi também director do Conservatório de Lisboa.

Fotos de Deyvis Malta (1.ª) e Dias dos Reis (2.ª e 3.ª).

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