domingo, 13 de dezembro de 2009

A Morte de Alfonso XI, rei de Castela e Leão (1311-1350)

Alfonso XI de Castilla y León

"Nos começos do Verão de 1349, Alfonso XI de Castela, El Onceno, desceu até ao Sul para pôr cerco a Gibraltar. Levava com ele o estímulo de alguns triunfos que o em­purravam para o domínio do Estreito e para a investida final sobre Granada.
Na embalagem do Salado ele tinha-se apoderado, com as fulgurantes campa­nhas de 1341, de posições tão importantes como Locuvin, Alcalá de Benzayde (Alcalá la Real), Priego, Carcabuey, Rute, Benamejí e Torre de Matrera.
No ano seguinte, quando lhe chegaram informações de que Abu-l-Hassan se agitava de novo em Marrocos com propósitos agressivos, o rei agiu preventivamente e apressou-se a cair sobre Algeciras. Tratou-se de um cerco demorado e custoso, que Yusuf de Granada enfrentou com denodo, através das armas e de negociações ardilosas.

Mas o esforço dos Muçulmanos foi vão.
No Domingo de Ramos de 1344, o mui nobre rei D. Alfonso, com todos os prelados, e ricos-homens, e todas as outras gentes que aí eram, en­trou com mui grande procissão, e com os ramos nas mãos, naquela cidade. Quando se rezou missa na mesquita maior, crismada de Santa Maria de la Palma, os Castelhanos puderam ufanar-se de terem em seu poder duas das posições vitais para o domínio do Estreito - Tarifa e Algeciras. Faltava Gibraltar, do outro lado da baía.


É nas cercanias de Gibraltar, e do seu rochedo, que reencontramos Alfonso, em Março de 1350, comandando um assédio de ferro e fogo.
Este é um dos empreendimentos mais caros ao seu coração de guerreiro e ao seu orgulho de rei.
Para Muçulmanos e Cristãos, os calcários deste rochedo imponente, golpeados por escarpas abruptas que as neblinas translúcidas, saturadas de maresia, forram às vezes com uma película cinzenta de irrealidade, estão impregnados de lembranças e de símbolos im­perecíveis.

Para uns e para outros a luta pelo promontório assume-se como uma campanha sagrada.
Foi neste lugar que há mais de seis séculos irromperam na Península os cavaleiros de Alá conduzidos por Tariq ibn Ziyad.
Foi aqui que Fernando IV, pai de Alfonso, alcançou em 1309 uma das suas mais celebradas vitórias.
Mas Gibraltar é também uma mágoa corrosiva no peito de El Onceno, pois representa a única conquista perdida durante o seu reinado. Acima de qualquer conveniência estratégica, o desafio deste rochedo significa para o soberano de Castela uma questão de amor-próprio ferido.
Daí a sua insistência, ao cabo de dez meses, num cerco desesperado, em que se acentua a ol­hos vistos, por terra e por mar, a pressão castelhana.

Alfonso XI de Castilla y León

Quando já se anunciam neste recanto extremo da Andaluzia as luminosidades e os odores de uma Primavera exuberante, o arraial castelhano é de súbito devassado por intrusos de outra natureza.
Trata-se de um inimigo silencioso e escondido, incomparavelmente mais mortífero do que as investidas muçulmanas.
São legiões de bactérias assassinas, que subsistem nas veias dos ratos que se infiltram pelos postos de vigilância e ao longo dos fossos defensivos, e que dali partem para assaltar os abarracamentos, numa freima miudinha e voraz, com os focinhos aguçados e inquiridores.
As bactérias emigram dos ratos para as pulgas que medram, inchadas e luzidias, na higiene escassa das tropas amontoadas. E das pulgas se transferem elas para os tecidos humanos, através de picadas sorrateiras por onde se regurgitam as infecções.

O arraial de Alfonso fica num instante tomado pelos micróbios da Peste Negra, partidos dos confins asiáticos há cerca de três anos.
Os ratos vieram até aqui impelidos pela voracidade. Seguiram o tropel dos exércitos, emboscaram-se nos porões húmidos e saturados de mofo dos navios de longo curso, apanharam o rasto das caravanas que percorrem as grandes rotas comerciais. E com eles trouxeram as mortandades maci­ças que reduzem de um terço, em média, os aglomerados populacionais da Europa.

O acampamento castelhano torna-se num pesadelo onde os homens su­cumbem a um ritmo espantoso. Ante a possibilidade da morte quase certa, o clima que por aqui domina é o de um pavor irracional.
Alastram as febres, os vómitos, os delírios. Brotam nos enfermos os bubões, os inchaços dos gânglios linfáticos, o susto medonho dos caroços a romperem no pescoço, nas axilas, nas virilhas. Por baixo da pele dos contaminados deslizam hemorragias que vão colorindo os corpos de um violáceo carregado. Os homens escurecem com a doen­ça, e é por isso que a peste se chama negra.

E negras se mostram também as pers­pectivas deste cerco. O arraial deixa de ser um cordão de lâminas, de máquinas e de vontades capazes de levarem de vencida as muralhas e os defensores de Gibraltar. Transforma-se num universo de hemorragias pestilen­tas, de carnes torturadas, de correntezas de pânico.

 
Os efectivos cristãos minguam de forma alarmante e os fidalgos mais próximos de El Onceno antevêem um desastre de proporções irreparáveis. Receiam pela sorte de todos e, em particular, pela vida do rei. (...).
(...) O rei não leva nada a bem os cuidados e prevenções desta procissão assustada. Rebate os avisos, furta-se ao medo, pede que não tornem a dar-lhe tais conselhos.
Compreende-se. Nos seus trinta e nove anos ele vai caminhando pelo pico da vida e das energias, capaz de mover o mundo por Castela.

E, depois, há a he­rança dos antigos. Interroga: como se pode abandonar Gibraltar, essa derrota transformada em chaga que ele carrega dentro de si há dezassete anos?
Insiste: há que re­conquistar as muralhas que o pai ganhou um dia para Castela, e que ele, Alfonso, permitiu que se perdessem no seu tempo.
Além do mais, ele adivinha o êxito, entre­ga-se à esperança de que a resistência moura esteja por um fio. É só mais um sacri­fício, um esforço, um empurrão. Como é possível que não vejam o que ele vê nem sintam o que ele sente?
Virar costas a Gibraltar é que nunca - seria vergonha muito grande por medo da morte assim a deixar.

Alfonso XI de Castilla y León

Perante tais palavras de um tal rei, que haverá mais a dizer?
Toda a gente se cala, todos retornam, taciturnos, às obrigações do cerco. E assim vão andando as coisas, deste modo se gastam as horas entre assédios, ciladas, mortes e terrores.
Até que, certo dia, o rei se sente escaldar num febrão. E quando lhe tacteiam o corpo robusto percebem-lhe, num sobressalto, os temíveis inchaços dos gânglios, avisos irrecusáveis de fatalidade próxima.

Decorrido pouco tempo, para horror dos senho­res fidalgos, o homem de ferro principia a não dar acordo de si. Dos seus membros, que se vão revestindo de manchas violáceas, apenas se desprende flacidez e ausência de von­tade: ele mal consegue mover um dedo, quanto mais o mundo. Ali já só imperam as bactérias, as febres e a prostração do fim iminente.
E toda a gente compreende que Alfonso, El Onceno, está exaurido, sem defesa, quase a perder a batalha que talvez mais tenha ambicionado vencer.




Então, num ápice, o choque terrível: e morreu sexta-feira da Semana Santa, que dizem de indulgências, que foi aos vinte e sete dias de Março (...) no ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil e trezentos e cin­quenta anos, que foi então ano de Jubileu.
Alfonso, o grande monarca, terror do Islão, foi derrubado pelos ratos, pelas pulgas e pelos micróbios.

Entre as forças do cerco desatam-se o assombro e o desânimo.
No arraial, em redor do cadáver de El Onceno, a peste continua a propagar-se, minando as carnes e os espíritos dos homens, sugando-lhes o quase nada que lhes resta de disposição combativa.
Com o inesperado passamento do rei perdeu-se também a alma da conquista. Não só agora, como se verá, mas por muitas décadas.

Em Gibraltar, como por toda a Granada, difunde-se com celeridade a notícia, e os Castelhanos julgam apanhar no ar, do lado do inimigo, uma espécie de respeitosa passividade:

"E os Mouros que estavam na vila e castelo de Gibraltar, depois de saberem que o rei D. Alfonso estava morto, ordenaram entre si que nenhum ousasse fazer qualquer movimento contra os Cristãos, nem mover peleja contra eles.
Ficaram todos quietos, e diziam entre si que naquele dia morrera um nobre rei e grande príncipe do mundo, pelo qual não somente os Cristãos eram honrados, mas também os cavaleiros mouros que por ele haviam ganho grandes honras." (*)

(*) - José Bento Duarte - Peregrinos da Eternidade - Crónicas Ibéricas Medievais - Editorial Estampa - Lisboa - Portugal - 2003.
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Nota da Torre:
Este rei castelhano, Alfonso XI, casou com Maria, filha do rei português Afonso IV (o Bravo). Foi portanto cunhado de Pedro I de Portugal (o Justiceiro), que ficaria lembrado até hoje, sobretudo, por seus amores com Inês de Castro.
Do matrimónio de Alfonso XI com Maria nasceu o rei Pedro I de Castela (o Cruel), de que já tratámos aqui (ver 12-Junho-2008 e 7-Junho-2009).

De uma ligação com a fidalga Leonor de Guzmán teve Alfonso XI vários filhos, entre eles Enrique, conde de Trastâmara.
Este Enrique comandou entre 1366 e 1369 a guerra civil contra o seu meio-irmão Pedro, o Cruel, e acabaria por assassiná-lo nas imediações do castelo de Montiel. Subiria de imediato ao trono (como Enrique II de Castela e Leão), iniciando a dinastia castelhana dos Trastâmaras (Enrique II --> Juan I (que foi derrotado em Aljubarrota pelos Portugueses, no ano de 1385) --> Enrique III --> Juan II --> Enrique IV --> Isabel a Católica (irmã de Enrique IV; casaria com Fernando de Aragão, criando as condições para a futura união dos reinos ibéricos, que, com excepção de Portugal, se transformaria num grande país chamado Espanha).

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