quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Aberturas de Grandes Livros - "A Maravilhosa Viagem" (Castro Soromenho - Portugal) - REPOSIÇÃO




(Capa da edição da Arcádia)





O navegador português Diogo Cão, a que se refere o autor,
coloca o padrão nas costas do Sul de Angola.




Casa do século XV, ainda hoje existente no centro da cidade de Vila Real (Trás-os-Montes, Portugal), onde a tradição garante ter nascido o navegador Diogo Cão.

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"A Maravilhosa Viagem", de Castro Soromenho (descrição das costas do Sul de Angola)


“Um mundo misterioso vem até às areias desérticas, soltas ao vento, onde se ergue negra penedia que se alonga pelo mar. 

Pequenos morros nus e escuros destacam-se aqui e ali, na costa, com pássaros marinhos ao sol. Ao redor, um mundo de areia. 

Uma asa negra de abutre ganha, ao longe, os céus do deserto. Sobranceiro ao grande mar africano, abrem-se os braços de um padrão.

Quando todo o areal luz ao sol e o céu é azul claro, sereno e límpido, enxerga-se na linha do horizonte, terras dentro, uma mancha.

Para as bandas do oceano, calmo como mar morto, é o céu sem fundo. Velhos marinheiros, que dobraram aquele Cabo Negro onde o seu descobridor plantou o padrão, assinalaram essa mancha, parada e enorme quando o céu se abre até aos confins do horizonte, mas nenhum afoitou passos para a sua descoberta.

Entre o mar e essa terra alta, estende-se o deserto de areias soltas. E os marinheiros, que outros mares do Sul iam singrar na descoberta de novas terras, não passaram das praias brancas. É dessa terra alta, como que metida no céu, que vem a noite sobre o deserto. A noite e o mistério sobre que tudo repousa.

Correndo a sua sombra no azul das águas, um pássaro apanha um peixe na ponta vermelha do bico e ganha as brisas do largo, perdendo a brancura das asas nos horizontes longínquos.
Outros seguem-lhe o voo largo e lento, de longe em longe interrompido subitamente, para em descidas vertiginosas picarem o peixe à flor da água.
E é já com as sombras da noite sobre os braços do padrão que o bando regressa, corta o céu da praia, solta gritos vibrantes e entra e perde-se no fundo da noite da terra erma.

Peixes voadores prateiam-se sobre o mar tranquilo. Nas cavernas das rochas, grilos vermelhos começam a cantar. E como que embalando o seu canto, as águas espumadas marulham nas areias ainda quentes do sol. A noite fecha-se, negra e funda, sobre o deserto e o mar. E tudo cai num grande silêncio. (…)

(…) A recordar os passos do homem por aquelas terras sem nome de gentio - pois Cabo Negro foi a legenda que lhe deu o descobridor - só existe o padrão, enegrecido por mil e mil sóis.

Ergueu-o, em 1485, Diogo Cão, na viagem em que os ventos mais longe levaram as velas da nau da Descoberta. (…)”.


A Maravilhosa Viagem - Castro Soromenho (1910-1968) - Publicado por Editora Arcádia, Lisboa, Portugal, 1961.

África Minha
(Out of Africa)
(I)

(II)


1 comentário:

Anónimo disse...

Bela abertura de um belo livro. A Maravilhosa Viagem é, sem dúvida, a melhor obra da vertente etnográfica de Castro Soromenho. Parece-me que essa vertente é a menos estudada. Os críticos consideram a trilogia de Camaxilo (Terra Morta, Viragem e A Chaga) o ponto alto de sua obra.